Em A Mulher da Luz Própria, Helena Ignez reconta sua história sob a direção da segunda filha, Sinai Sganzerla, num filme que faz jus à beleza, à integridade e à vocação mutante dessa imensa artista brasileira. O filme descerra a cortina sobre a nova edição do Recine 2020 – Festival Internacional de Cinema de Arquivo, que acontece inteiramente online e gratuito a partir desta segunda, 17/8, e até o dia 27/8.
Depois de ser criado no âmbito do Arquivo Nacional em 2002 e passar, a partir de 2013, para a Cinemateca do MAM e outros espaços do Rio de Janeiro, o Recine é assumido agora por Cavi Borges para cruzar o período de pandemia sem sessões presenciais. Os filmes serão exibidos na página Recine do Facebook e nos sites do Vertentes do Cinema, da Cinemateca do MAM e da Academia Internacional de Cinema, conforme programação descrita aqui.
Haverá filmes novos de Silvio Tendler, Sylvio Lanna e Emília Silveira, além de uma série de homenagens e sessões especiais, tudo ancorado na utilização e ressignificação de materiais de arquivo. Veja mais detalhes ao fim da matéria.
Mulher em movimento
“Quem é Helena Ignez?”, indaga-se ela mesma na primeira cena de A Mulher da Luz Própria. Pergunta difícil de responder sobre quem foi cronista social e glamour girl na juventude em Salvador, figura angelical em filmes do Cinema Novo, a menina-bandida Sonia Silk no Cinema Marginal, a Lilavan Devi Dasi na imersiva passagem Hare Krishna pela Índia, até chegar à diretora brechtiana e espiritualizada de A Canção de Baal, Luz nas Trevas, A Moça do Calendário e outros atrevimentos.
O documentário de Sinai atravessa poeticamente essa trajetória, tendo como estribilho as andanças incansáveis de Helena por cenários de várias cidades do mundo. A ideia de uma mulher em permanente movimento se concretiza não só fisicamente, mas sobretudo na inquietação que a fez trocar de pele diversas vezes ao longo da vida. Nordestina na Bahia, indígena na Índia, intensa nos silêncios e nos gestos, Helena Ignez convoca todas as forças do feminino na busca de se reconhecer.
Sem exatamente posar de vítima, ela deixa patente a inferiorização da mulher, mesmo em ambientes aparentemente insuspeitos como o artístico. Exemplo disso é a maneira como narra o inglório fim do seu casamento com Glauber Rocha, quando a desigualdade de gêneros a expulsou da Bahia e retirou-lhe a guarda da filha Paloma. Helena demonstra plena consciência do que é e também daquilo que não é. Rejeita os epítetos de musa e marginal, ao mesmo tempo que exalta sua relação com as Ligas Camponesas nos anos 1960, seu inconformismo diante de todas as opressões e a plena liberdade do desejo.
Sem o peso de aspirar a uma biografia exaustiva, deixando mesmo algumas reticências no ar, Sinai destacou os momentos decisivos da carreira da mãe – das rodas sociais ao teatro, ao cinema, à quiromancia e à plena autoralidade nos filmes. Um trecho particularmente bonito do documentário é o resgate das imagens filmadas por Rogério Sganzerla no exílio em Londres e no Marrocos, quando o casal abraça o visual hippie e a estética psicodélica. Essas cenas foram destacadas pela diretora no curta Extratos, também na programação do Recine.
Vale destacar o esmero de Sinai na seleção musical, em que clássicos brasileiros e latino-americanos convivem harmoniosamente com Chopin, Satie, Debussy, Kurt Weill e Walter Smetak. Impossível segurar as lágrimas quando a voz de João Gilberto acaricia a Valsa da Despedida durante a recordação da morte de Sganzerla. Ali se percebe o amor de uma família transbordando da tela para todos nós.
Homenagens e novidades
De Sinai Sganzerla será apresentado também o didático-crítico O Desmonte do Monte, sobre a demolição do Morro do Castelo. Bem ao gosto da generosidade do curador Cavi Borges, o Recine 2020 terá uma série de homenagens. As exímias documentaristas Susanna Lira e Emília Silveira terão retrospectivas de seus trabalhos, cobrindo os filmes biográficos da primeira e quatro longas da segunda. O doc mais recente de Emília, Tente Entender o que Tento Dizer, sobre a resiliência vital de personagens soropositivos, teve poucas exibições até agora.
Sessões especiais vão contemplar o novo curta do cineasta de invenção Sylvio Lanna, Farofina, um Filme a ser Feito (com imagens de arquivo de sua viagem pela África na década de 1970) e os 100 anos de João Cabral de Melo Neto com o doc-poema audiovisual Recife-Sevilha – João Cabral de Melo Neto, de Bebeto Abrantes.
Os 80 anos do cineasta Antonio Carlos Fontoura e do artista plástico Roberto Magalhães serão comemorados com a estreia do novo curta de Fontoura sobre o pintor. É uma retomada do célebre curta Ver Ouvir (1966) sobre o trabalho de Magalhães, Antonio Dias e Rubens Gerchman. No novo Ver Ouvir – Roberto Magalhães, Fontoura retorna ao único do trio ainda vivo. A sessão dos dois curtas no dia 27/8 será seguida de uma live com cineasta e pintor, mediada por mim.
Entra tantas atrações, cabe citar ainda uma das primeiras exibições de Ferreira Gullar – Arqueologia do Poeta, de Silvio Tendler, e da cópia restaurada de Copacabana me Engana, o clássico de Fontoura estrelado por sua mulher Odete Lara e divinamente fotografado por Afonso Beato e Jorge Bodanzky.
A espertíssima vinheta do Recine 2020, criada por Christian Caselli:
Bravo, Fabiano!
Helena ignes não foi só uma mulher, foi uma luz que iluminou a sombra dos preconceitos. Surgiu no cinema pelas mãos de Roberto Pires, no seminal “A Grande Feira”.
Bravo! Excelente programação!
Mais uma prova de que continuamos “atentos e fortes” diante das deploraveis tentativas de assaltar nossas tradicoes culturais, das quais o Cinema Brasileiro e seus herois sao parte intrinseca de sua fabrica. CINEMA EH REALIDADE, e EH essa verdade com cara de misterio que o RECINE realca e reforca. Mais o que todos estao fazendo para nao permitir que nossa imagens se percam nos poroes do autoritarismo.