Entre velas e Welles

A JANGADA DE WELLES na Mostra Ecofalante

Firmino Holanda é autor de uma pesquisa fundamental sobre a passagem de Orson Welles pelo Brasil em 1942 para filmar É Tudo Verdade. O livro Orson Welles no Ceará (Edições Demócrito Rocha, 2001) contextualiza admiravelmente, em texto e imagens, a aventura do realizador de Cidadão Kane em Fortaleza, a bordo da política de Boa Vizinhança implantada pelos EUA para assegurar alianças na II Guerra Mundial.

Welles veio filmar o carnaval brasileiro e decidiu incluir uma reconstituição da epopeia dos quatro jangadeiros que singraram os mares da capital cearense até o Rio de Janeiro numa jangada precária, ao longo de 61 dias e 2.400 quilômetros, para reivindicar direitos trabalhistas a Getúlio Vargas. Como se sabe, a filmagem resultou num acidente fatal para o líder dos jangadeiros, Manuel Jacaré, quando se aproximavam do ponto final da viagem, na Barra da Tijuca. Welles considerava esse episódio como o início da maldição que cercou sua carreira após o megassucesso de Kane.

Junto com Petrus Cariry, Firmino Holanda levou o seu trabalho para o cinema no documentário A Jangada de Welles, que integra a 9ª Mostra Ecofalante e pode ser visto aqui entre quarta (2/9) e sexta (4/9). O filme recupera arquivos e depoimentos de testemunhas oculares da presença de Welles no Brasil, assim como traços da mitologia criada a esse respeito. Rogério Sganzerla foi um dos maiores cultores dessa mitologia, e lá estão cenas do seu Nem Tudo é Verdade, com Arrigo Barnabé vivendo Welles ao lado de Helena Ignez e Grande Otelo.

Firmino e Petrus abriram o compasso do filme para tratar da situação dos pescadores e jangadeiros cearenses para aquém e além das filmagens de 1942. O Mucuripe, locação escolhida pela equipe de Welles, era então uma aldeia pesqueira remota, cujos moradores foram sendo depois afastados da orla pela urbanização da cidade e a especulação imobiliária. O Mucuripe favelizou-se ao mesmo tempo que os pescadores foram sendo expulsos de toda a beira-mar de Fortaleza e cedendo lugar aos bairros afluentes. A Jangada de Welles termina com imagens de uma remoção violenta em 2001.

Há lugar no filme tanto para a evocação afetuosa da breve convivência com o americano genial como para as vozes críticas que destoam do coro habitual. O filho de “Jacaré”, José Castro “Guaíba”, afirma nunca ter se certificado das circunstâncias da morte do pai. O pesquisador de música Cristiano Câmara, com sua ênfase costumeira, desmente a visão romântica dos jangadeiros, garantindo que tudo neles era tensão e exaustão. Os quatro aventureiros imortalizados pela imprensa da época e pelo projeto de É Tudo Verdade foram heróis da luta trabalhista que merecem ser lembrados diante do que temos vivido de 2016 para cá.

O documentário de Firmino e Petrus lança mão de vários recursos para se manter dinâmico e atraente. Comentários históricos e cinematográficos se combinam numa rede ensaística habilidosa. A narrativa trabalha graficamente trechos do roteiro de Welles, materiais de arquivo tratados metaforicamente (como no agenciamento de cenas do expressionismo alemão para abordar o nazismo) e até uma bonita projeção de It’s All True na vela de uma jangada. Nem tudo funciona tão bem, e me refiro principalmente à infeliz dublagem de Welles lamentando em português a morte de “Jacaré”.

Por duas vezes o filme traz o áudio de Welles no papel do marinheiro Michael O’Hara em A Dama de Shanghai (1947), recordando uma suposta visão macabra no litoral de Fortaleza. No seu livro, Firmino Holanda identifica nessa cena um eco das filmagens de cinco anos antes e uma prova de que “Welles, à maneira de antigos cronistas europeus ao descrever o Novo Mundo, lembra (da) nossa terra com as cores fortes das narrativas aventurescas”.

Destaquei abaixo a cena original de A Dama de Shanghai 

Um bom complemento para A Jangada de Welles é o próprio material filmado por Welles para Four Men on a Raft (Quatro Homens numa Jangada), disponível no Vimeo com erro no título:

 

Um comentário sobre “Entre velas e Welles

  1. Excelente. Mai um testemunho da presenca de Welles no Brasil, que afetou sua carreira, mas deixou uma marca indelevel na sua vida.

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