O balanço dos jovens trotskistas brasileiros e a aventura de espionagem num lar de idosos chilenos são duas das melhores atrações do festival
Brancaleone na USP
“Bem nutridos e mal humorados”. Talvez a segunda parte da categorização de Mino Carta, que abre o filme, não faça jus exatamente ao pessoal da Libelu. Longe de serem mal humorados, eles eram descontraídos, performáticos, festeiros, fãs dos Rolling Stones. Para uma revista semanal da época, eram caricaturados como a “esquerda adolescente”. Eles próprios se comparavam ao exército de Brancaleone, pequeno e lúdico, mas efetivo. Hoje muitos são jornalistas, professores, economistas com passagens pela imprensa burguesa. Tem até um ex-ministro e um crítico gastronômico.
Liberdade e Luta era o braço estudantil da Organização Socialista Internacionalista (OSI), de filiação trotskista, nascido no campus da USP em 1976. Das várias correntes do movimento estudantil, a Libelu era a mais avançada e a menos sisuda. Foi a primeira a levar para a rua o slogan “Abaixo a ditadura” depois do AI-5. Apostava na aliança de estudantes e trabalhadores, a ponto de juntar-se em boa parte ao nascente PT no fim da década.
Libelu – Abaixo a Ditadura, de Diógenes Muniz, recupera com excelência essa história de reuniões clandestinas, passeatas, performances de rua e repressão policial comandada pessoalmente pelo prepotente coronel Erasmo Dias. Vários ex-militantes e simpatizantes voltam à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP para relembrar os tempos de luta e fazer um balanço da experiência em suas vidas. As declarações exalam bom-humor, franqueza e algum constrangimento. Cada um(a) dá as caras ao lado da sua foto nos arquivos do DOPS. As memórias dos costumes, preferências e ações do grupo chegam com boa dose de distanciamento, mas também com carinho por um passado que continua como motivo de orgulho.
E, afinal, como cada um conciliou os ideais trotskistas da época com os arranjos do mundo do trabalho e os rumos da vida posterior? Há os que mantiveram uma linha de esquerda, como Paulo Moreira Leite, que passou por Veja, O Globo e hoje batalha no Brasil 247; ou Laura Capriglione, da equipe dos Jornalistas Livres. Outros se bandearam para a direita, como Demétrio Magnolli e Reinaldo Azevedo, que também participam do filme.
Um poema de Paulo Leminski, dedicado à Libelu e trazido à tona no documentário, diz o seguinte:
“Me enterrem com os trotskistas
na cova comum dos idealistas
onde jazem aqueles
que o poder não corrompeu”.
Um dos que leem o poema diante da câmera é Antonio Palocci, um ex-Libelu que serviu ao PT para se transformar depois em delator sem provas nem fidedignidade. Entrevistado na prisão domiciliar, em tom quase patético, Palocci diz se arrepender de ter feito caixa 2 em suas campanhas. Como se vê, militância política não se confunde com caráter pessoal. Libelu – Abaixo a Ditadura nos permite verificar como o tempo é o que melhor arranca as máscaras.
O doce infiltrado
A meio caminho entre o documentário de observação, a farsa documental e a paródia do filme de espionagem, O Espião (The Mole Agent) é tão cativante quanto intrigante. Segundo conta a diretora chilena Maite Alberdi, ela estava visitando o detetive particular Rómulo Aitken para preparar um filme quando este recebeu uma cliente com um pedido especial: investigar se sua mãe estava sendo bem tratada numa casa de repouso da periferia de Santiago. O caso chamou a atenção da cineasta. O detetive publicou um anúncio no jornal convocando homens de 80 a 90 anos para se infiltrar no lar dos velhinhos. Maite filmou as entrevistas e se encantou com o simplório Sergio Chamy, que acabou contratado. O filme, então, se instala no Lar São Francisco e acompanha a desajeitada performance do espião de 83 anos, ao mesmo tempo em que ele progressivamente se envolve com as “abuelitas” e vira o xodó da casa.
É preciso suspender a descrença para ver o filme como um documentário. Desde as cenas iniciais, no escritório do detetive, a cenografia e a iluminação de fime noir, a edição em cortes clássicos, a performance dos idosos, tudo remete ao estatuto da ficção. Na casa de repouso, a câmera se move com liberdade por corredores e quartos, seguindo o nosso infiltrado à maneira de A Pantera Cor de Rosa, sempre com tomadas em tripé ou carrinho, muito bem planejadas e enquadradas. A crer que tudo isso era feito como se fosse um simples registro do dia-a-dia da instituição, sem que a trama fosse de conhecimento do staff da casa, então estamos diante de um milagre em matéria de estratégia documental.
Mas questionar o método e a ética de Maite Alberdi torna-se bastante secundário diante do resultado obtido. O Espião é um comédia deliciosa que aos poucos se transforma num drama comovente sobre a solidão dos idosos nesses lugares, quando não têm família ou são negligenciados por seus entes queridos. O amável Sergio, que não sabia sequer manipular um celular, tem que aprender a ser uma espécie de James Bond octogenário, lidando com microcâmeras, mensagens secretas e dissimulações.
Enquanto isso, o seu charme discreto e a disposição para ouvir fazem dele um canal por onde acessamos as demandas afetivas, as manias e as tristezas das senhorinhas. Ele se torna confidente da poeta, da cleptomaníaca, da angustiada pela falta de memória e ainda de uma pretendente que o escolhe para dar fim a sua virgindade. Assim Maite capta momentos de ternura, pesar e hilaridade – seja um simples varal repleto de camisolas, seja uma festa de aniversário ou uma paquera geriátrica.
Se para Sergio a estada no Lar São Francisco representa uma quebra na sua rotina tediosa de viúvo recente, para os idosos em geral o filme serve como um alerta sobre o abandono. Para os espectadores, é um deleite sem preço.
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