É Tudo Verdade: “Boa Noite” e “Jair Rodrigues – Deixa que Digam”

A voz de Cid Moreira e o sorriso de Jair Rodrigues colorem esses dois documentários de recorte tradicional

Em casa com A Voz

Durante 27 anos ele sonorizou o jantar da maior parte das famílias brasileiras com sua voz apresentando o Jornal Nacional. Depois virou uma espécie de voz de Deus lendo a Bíblia e mensagens místicas para projetos comerciais. Em Boa Noite, o simpático documentário de Clarice Saliby, Cid Moreira aparece bem distante dessas imagens literalmente consagradas. Aos 91 anos, ele está fazendo sauna, esteira, cortando o cabelo, anotando tudo o que faz numa agenda obsessiva e revendo momentos de sua longa carreira no rádio, em cinejornais e na televisão.

A postura é simpática, relaxada, levemente zombeteira em relação a suas pronúncias e entonações no passado. A diretora o convidou a narrar o filme, mas usou as cenas da gravação como mais uma forma de desconstruir a figura empolada que ficou célebre na bancada dos telejornais. Cid usa uma voz mais empostada do que nunca para narrar a si próprio, o que acaba contribuindo para o tom lúdico geral. Em dado momento, ele se aventura como ator, dramatizando o dia em que ficou preso na sauna. Em seguida, interfere divertidamente na edição da cena.

A pesquisa nos arquivos selecionou as manchetes mais sensacionais lidas pelo apresentador, assim como as sobras de edição que o mostram retocando a imagem e descontraindo os músculos do rosto antes de entrar no ar. Em se tratando da Globo e dos tempos da ditadura, o tema política não poderia faltar. Cid explica que não era editor do JN (como William Bonner), mas apenas “lia o que estava escrito”. Nesse ponto, Clarice Saliby fez o gesto mais digno possível dentro das circunstâncias: inseriu na íntegra a leitura por Cid da nota de direito de resposta de Leonel Brizola a um ataque da emissora em março de 1994. Foram três minutos de verdades jogadas na cara da Globo pela voz do seu próprio ícone.

De resto, Boa Noite não avança para além de um retrato amável do outono do locutor. Mostra-o completamente dedicado a manter a boa forma e usar o vozeirão ainda intacto para falar, com um misto de simplicidade e vaidade, a quem quiser ouvir.    


Tributo a O Sorriso

Desde que Jair Rodrigues (1939-2014) concordou em fazer um papel dramático no seu filme Super Nada, o diretor Rubens Rewald (não confundir com o crítico Rubens Ewald Filho) alimentou o desejo de fazer um documentário sobre o próprio Jair. O cantor faleceu poucos dias depois da decisão tomada. O filme virou póstumo, mas não menos celebratório do sambista esfuziante.

O modelo é o biográfico convencional, feito para louvar as virtudes do personagem. Menino da roça no interior de São Paulo, engraxate e alfaiate antes de se lançar em programas de calouros, bares e boates, Jair Rodrigues de Oliveira nunca perdeu o jeito de moleque, simples e sorridente, gestos largos e entrega corporal às performances. Quando estourou com Elis Regina em O Fino da Bossa, juntaram-se os dois maiores sorrisos da MPB.

O retrato é de um cara família, agenciado no início da carreira por um irmão paternal e produzido no final pelo filho devotado, o também cantor Jair Oliveira. Sua história é contada, em parte, pelo filho, que o imita na primeira pessoa, dirigido por Rubens Rewald. A filha também é cantora, a bela Luciana Mello. No fim das contas, uma biografia onde não há fissuras ou conflitos. Nem mesmo o racismo brasileiro parece tê-lo atingido diretamente.

A falta de um posicionamento político explícito, mesmo quanto à questão racial, é minimizada por todos os que falam dele no filme. O historiador e músico Salloma Salomão aconselha a procurar a negritude de Jair nas suas canções, embebidas no candomblé e na África, muitas delas criadas por compositores populares negros. Partindo do samba Jair passeou pela Bossa Nova e o sertanejo, chegando a ser reconhecido como um precursor do hip hop.

Feito com carinho e boa pesquisa de materiais de arquivo, o documentário tem simpatia suficiente para compensar sua fatura padronizada.

 

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