Um retrato de Wim Wenders encerra hoje o festival. Jorge Bodanzky deixou seu testemunho sobre Brasília e a UnB
O amigo alemão
“Veja os filmes dele, idiota!”, diz Werner Herzog sobre seu colega Wim Wenders, dirigindo-se a supostos jovens cineastas numa das primeiras cenas desse documentário. Houve um tempo, ali pelos anos 1980, em que Wenders era de fato uma inspiração para o cinema de ficção contemporâneo. Hoje ele chama mais atenção pelos documentários, mas mantém a mística do criador entre dois mundos, o europeu e o americano. Wim Wenders, Desperado quer lançar algumas luzes sobre sua carreira.
Trata-se de um telefilme que ganhou em status depois de passar pela seleção Cannes Classics. É surpreendente que Wenders tenha concordado em voltar a locações de diversos filmes seus para reproduzir algumas cenas consigo mesmo no lugar dos atores. É assim que ele vagueia pelo deserto de Paris, Texas, “contracena” com Bruno Ganz no metrô de O Amigo Americano, ouve os pensamentos dos frequentadores da biblioteca de Asas do Desejo e retorna ao Quarto 666 para responder que, sim, uma vez mais o futuro do cinema está ameaçado (e não havia ainda a pandemia).
Essas brincadeiras são talvez o que de melhor Eric Frielder e Andreas Frege oferecem no seu filme. Em duas horas um tanto esticadas, Wenders reflete sobre seu desejo de aventura nas filmagens, sua relação com os EUA (“quando fui para lá, achei que ia ser um americano) e o desejo de ser pintor (“acabei encontrando uma forma diferente de pintar”). Gente como Patti Smith, Willem Dafoe, a diretora de fotografia Agnès Godard e a esposa de Wenders, Donata, desfiam elogios e mais elogios ao cineasta, sem agregar muita coisa de real importância.
Uma sequência, logo no início, reúne cenas de estrada em vários filmes, sugerindo que teríamos um mínimo estudo de seu estilo e sua temática. Não é o caso. As entrevistas e andanças de Wenders ficam dispersas em boa parte do tempo. Três filmes apenas recebem tratamento mais detido. São eles O Amigo Americano, que o projetou internacionalmente; Paris, Texas, em que ele julga ter atingido a maturidade; e o fracassado Hammett, que selou sua inadequação ao sistema criativo de Hollywood.
Francis Coppola, produtor de Hammett e retratado simbolicamente no filme-exorcismo O Estado das Coisas, tem uma polpuda participação, explicando o conflito entre seu modelo de produção e as improvisações de Wenders. Além do fato do diretor ter tentado fazer de Ronee Blakley, sua mulher à época, a atriz principal de Hammett. Essa relação conflituosa ocupa toda a meia hora final, um exagero em matéria de economia narrativa.
Não há como negar o interesse cinefílico de Wim Wenders, Desperado. Há um bocado de making ofs, inclusive do recente Two or Three Things I Know About Edward Hopper. O cineasta aparece preparando uma grande instalação sobre seu cinema no Grand Palais, em Paris. E vale a pena curtir os passeios de Wenders pelos cenários de alguns de seus filmes. Mas resta a impressão de que personagem e obra mereciam um olhar mais sólido e penetrante.
A universidade e o sonho
Se a construção de Brasília já vinha rotulada como uma utopia, imaginem o projeto de Darcy Ribeiro de uma universidade livre, independente e integrada à vida social para irradiar conhecimento a partir do coração do país? A UnB nasceu com essa inspiração, antes que incomodasse o poder militar a ponto de ser invadida diversas vezes e descaracterizada como modelo de vanguarda do ensino universitário.
Jorge Bodanzky estudou lá entre 1963 e 1965, quando explorou Brasília em fotos e filmes Super 8. Esse material, quase desconhecido até agora, enriquece Utopia Distopia com um olhar entre o documental e o experimental. Bodanzky voltou uma vez mais a Brasília para revisitar a universidade em 2019 e entrevistou diversos ex-alunxs e ex-professorxs sobre os sonhos que nutriram o alvorecer da UnB. Ouviu, entre outros, Jean-Claude Bernardet, Marcio Souza, Luís Áquila, Luís Humberto (que criu o primeiro laboratório fotográfico da UnB) e Amélia Toledo (de quem Bodanzky foi assistente), Lena Coelho Santos (com quem se casou e teve a filha Laís) e Márcia Neves Bodanzky, colega da época e sua mulher atual.
O tom predominante é um certo saudosismo em relação à vida nos alojamentos, o orgulho de “botar a mão na massa” para construir a universidade e participar de um momento de grandes esperanças no futuro do país. Em gravações mais antigas, vemos Oscar Niemeyer destacar a importância de preparar os alunos para a vida e valorizar a solidariedade. Mas era democracia demais para o gosto dos que tomaram o poder em 1964. Vieram as invasões militares (bem relembradas em Barra 68, de Vladimir Carvalho), a prisão de professores, a demissão coletiva de 160 deles em 1965, a queima de preciosos cartazes cubanos e o enterro de filmes para salvá-los da sanha repressiva. A viúva do compositor Claudio Santoro conta que muitas partituras do marido foram salvas pelo então presidente do STF, Alvaro Moutinho Ribeiro da Costa.
O relato da distopia leva à inevitável discussão sobre a eventual permanência das ideias utópicas. Nesse ponto, a fala mais contundente é de Vladimir Carvalho, professor que lá aportou em 1969: “A universidade burocratizou-se, não debate mais nada”. A acusação fica sem contraponto de igual firmeza.
Para Bodanzky pessoalmente, restou uma experiência de descoberta do Brasil e da cultura brasileira que valeria para sua obra futura. De Brasília, ele viajava com frequência para o interior do país. No livro que fizemos juntos (baixe o PDF gratuito aqui), ele assim se referiu a esse período: “Até então, eu tinha uma certa pretensão intelectual, mas não um sentimento de grupo. Seguia a onda, era de esquerda porque tinha mesmo de ser. Em Brasília, adquiri a visão de mundo que determinou tudo o que eu faria a seguir. Posso dizer que minha vida se fundou ali, junto com a universidade”.
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