Uma língua, uma religião

Nheengatu – A Língua da Amazônia estreia nesta quinta-feira (22/10) abrindo o Doc Lisboa e, no dia seguinte, na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Como português radicado no Brasil, o cineasta José Barahona (Alma Clandestina, Estive em Lisboa e Lembrei de Você) tinha um interesse especial em investigar o que restou do nheengatu, língua de contato derivada da mistura do tupi com outras etnias indígenas e o português. Ferramenta de colonização e catequização dos índios brasileiros, o nheengatu está em processo de extinção, restringindo-se hoje a comunidades do Alto Rio Negro.

Foi para lá que Barahona abalou-se com uma pequena equipe e um guia-intérprete. Chegavam a cada comunidade sem aviso prévio e procuravam estabelecer uma interação através da filmagem. O diretor incorporava-se às cenas, tendo sempre em mãos o seu celular, que às vezes passava aos interlocutores indígenas para que esses registrassem o que fosse de seu interesse (com a tela sempre na vertical, o que serve para diferenciar os suportes mas é esteticamente lamentável). Em todo caso, a exposição do processo da viagem é parte do filme e contribui para a impressão de honestidade que a tudo perpassa. Testemunhamos até mesmo cochichos de personagens que temem estarem sendo explorados pela equipe de cinema.

Em cada parada do barco, Barahona pedia que as pessoas falassem para a câmera, conversassem entre si, tocassem seus afazeres costumeiros e, eventualmente, fizessem alguma demonstração ligada a sua sobrevivência. Tudo era um pretexto para que se expressassem em nheengatu. É assim que ouvimos histórias de um filho desaparecido no mato, da mulher americana que teria implantado a religião evangélica na região e de como uma sucuri um dia engoliu Tupã e depois de expeli-lo ficou com a bunda branca e deu origem aos brancos no mundo. A jornada de Nheengatu – A Língua da Amazônia avança para além das fronteiras da Venezuela e da Colômbia, onde o nheengatu ainda persiste, alternado com o espanhol. A antiga língua geral amazônica ecoa também em áudios de tradução, de maneira muito semelhante ao que Joel Pizzini fez com o idioma guató em 500 Almas. Não há, porém, informações de como essa língua se formou, nem como se foi perdendo com a mescla de civilizações.

A impressão é de que José Barahona saiu com o propósito de fazer um filme e acabou fazendo outro. A pesquisa sobre o nheengatu com frequência dá lugar à simples curiosidade sobre os hábitos e os casos que vão sendo encontrados pelo caminho fluvial, mesmo que não sejam falados naquela língua. Emerge, então, o grande tema-surpresa: a nova catequização das comunidades indígenas e caboclas. Vários entrevistados, entre eles um pastor indígena, exaltam os valores da nova religião, que teria combatido o alcoolismo, a raiva e os palavrões, levando junto os antigos costumes, as festas tradicionais, etc. Para os índios convertidos, talvez mais do que na época da catequese católica, Jesus é o caminho, a verdade e a vida. Uma Bíblia traduzida para o nheengatu coroa os achados de Barahona numa das localidades visitadas.

Na montagem de Jordana Berg, o filme conclui com outro achado interessante, o do túmulo de um português esquecido no meio da selva. O simbolismo desse encontro diz muito sobre a viagem de José Barahona. E também sobre os rumos da colonização brasileira, que através da língua e da religião vai apagando os últimos vestígios das nossas culturas originárias.


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