Os russos estão chegando

“A Infância de Ivan”

Uma coincidência causou simultaneidade parcial entre duas mostras online de cinema russo e soviético. No último dia 3 teve início a sétima edição da Mostra Mosfilm de Cinema Soviético e Russo, promovida pelo CPC-UMES (Centro Popular de Cultura da União Municipal dos Estudantes Secundaristas) em parceria com os venerandos estúdios Mosfilm de Moscou. No próximo dia 10, começa o Festival de Cinema Russo, produzido pela Roskino, organização promotora de conteúdos russos em todo o mundo.

A mostra da Mosfilm vai até o dia 13 e está oferecendo grandes clássicos como A Infância de Ivan, primeiro filme de Andrei Tarkovski, Tempestade sobre a Ásia, de Pudovkin, O Destino de um Homem, de Sergei Bondarchuk, Nove Dias em um Ano, de Mikhail Romm, Nós Somos do Jazz, de Karen Shakhnazarov, e Moscou Não Acredita em Lágrimas, de Vladimir Menshov, premiado com o Oscar de filme estrangeiro. As exibições se dão no canal do Youtube do CPC-UMES, e cada filme fica no ar durante seis horas a partir do horário especificado (veja um vídeo com a programação). Para uma maior compreensão do contexto desses filmes, leia o artigo do especialista João Lanari Bo no site Vertentes do Cinema.

Por sua vez, o Festival de Cinema Russo traz oito filmes contemporâneos (realizados entre 2016 e 2019) que a Roskino considera de apelo internacional. São eles Arritmia, de Boris Khlebnikov; Bolshoi, de Valery Todorovsky; O Coração do Mundo, de Natalia Meshchaninova; O Homem que Surpreendeu a Todos, de Natasha Merkulova e Aleksey Chupov; O Texto, de Klim Shipenko; Vamos nos Divorciar, de Anna Parmas; O Francês, de Andrei Smirnov; e a animação O Reino Gelado: Terra dos Espelhos, de Alexey Tsitsilin, Robert Lence. Os filmes ficarão disponíveis gratuitamente até 30 de dezembro na plataforma SPCine Play.

Já pude conferir dois filmes do Festival do Cinema Russo: Arritmia e Bolshoi.

“Arritmia”

Arritmia é um drama de grande realismo que narra em paralelo uma crise conjugal e uma visão cáustica da burocracia no sistema hospitalar russo. Aleksandr Yatsenko, excelente ator de estirpe meyerholdiana, desses que atuam com o corpo inteiro, vive um paramédico alcoólatra, ansioso, mas que se esforça e até se arrisca profissionalmente para salvar vidas na sua ambulância. Sua mulher (Irina Gorbacheva), médica no mesmo hospital, perdeu o interesse por ele e pede o divórcio por mensagem de texto.

Os personagens são complexos e multifacetados, assim como a relação do casal, que mantém um laço de dependência apesar do conflito e do estresse. O atendimento no hospital, por sua vez, é devotado mas ríspido, a ponto de os médicos discutirem grosseiramente entre si diante de pacientes em estado grave. Para piorar ainda mais, o novo chefe da unidade de emergência insiste em implantar um regime desumano com a desculpa de uma maior eficiência.

O filme oscila entre algum humor e cenas de muita crueza no dia a dia dos paramédicos. A direção de Boris Khlebnikov é impecável, baseada na agilidade documental da câmera e na excelência dos atores – dos protagonistas aos coadjuvantes atendidos em acidentes, brigas de rua e emergências domésticas. Premiado como o melhor filme russo de 2017, Arritmia articula o pessoal e o profissional para deixar patentes alguns dilemas e contradições da Rússia de hoje.

“Bolshoi”

O mesmo não se pode dizer de Bolshoi, mais um retorno ao mundo fechado do maior teatro de dança clássica do mundo. O filme do ucraniano Valery Todorovsky reedita os clichês da disputa de duas bailarinas por um papel de protagonista. Yulia (Margarita Simonova) é de família disfuncional do interior e foi adotada por um ex-bailarino que a viu dançando na rua. Karina (Anna Isaeva) é de família rica que fará tudo para ela ficar com o papel da Princesa Aurora em A Bela Adormecida, de Tchaikovsky. As exigências implacáveis da carreira, as fantasias em torno da sexualidade nascente e o drama de uma diretora artística acometida por Alzheimer completam o programa.

A estrutura narrativa salta entre presente e passado, criando elipses nem sempre bem explicadas. Emoções e decisões das personagens às vezes parecem fora de propósito por não estarem baseadas em ações claras. O que sustenta o interesse do filme por pouco mais de duas horas é o rigor formal e a imponência dos cenários autênticos do Bolshoi e da Academia de Dança de Moscou, filmados com lentes ultrapanorâmicas ((não esqueçamos que “bolshoy” significa “grande” em russo). O elenco composto de excelentes bailarinos jovens é um espetáculo à parte nos ensaios e apresentações, o que justifica a atenção dos fãs do balé clássico. No papel de Yulia jovem está Ekaterina Samuilina, da equipe olímpica russa de ginástica rítmica. As cenas de dança com ela desafiam os cânones da ortopedia.

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