Consulte sua agenda, mude seu programa, mas não deixe de ir ao Unibanco Arteplex (Rio) às 18h de terça, quarta ou quinta-feira. Você vai ver um documentário muito especial. Para mim foi uma surpresa e tanto conhecer Nego e Cocada, os protagonistas de No Meio do Mundo, co-produção franco-brasileira dirigida por Jean-Pierre Duret e Andréa Santana (veja o ótimo site do filme). Não tinha lido nada sobre o doc, e, talvez preconceituosamente, esperava uma visão naïf, miserabilista e “estrangeira” do Nordeste. Encontrei o oposto: uma convivência delicada, intimista e ao mesmo tempo veraz com crianças e adultos que vivem a pobreza com dignidade e esperança. Algo como um Mutum documental.
Nego, 12 anos, mora com a mãe e seus nove irmãos de pais diferentes no sertão pernambucano. Estuda e faz biscates no comércio para levar trocados para casa. Nas horas vagas, troca ideias com Cocada, 15 anos, que leva vida dura carregando porcos e lavando para-brisas de caminhões. As conversas dos dois, e deles com os adultos ao seu redor, contam toda a história. Os diretores utilizam o método do cinema direto, sem entrevistas nem depoimentos para a câmera. É um tipo de doc raro no Brasil, mas predominante no cinema europeu. O resultado soa semelhante a um filme de ficção. Extremamente bem utilizada, essa linguagem faz toda a diferença.
Somos trazidos para dentro do ritmo e do tom da vida dos personagens, sem intermediações evidentes. Não há retórica discursiva nem tampouco nas imagens, que podem ser cruas ou líricas, conforme a ocasião. Nego e Cocada, meninos bastante peculiares, têm uma melancolia que anda junto com a inocência. Cocada tem um sonho – o de sair um dia pela estrada como caminhoneiro e, quem sabe, chegar a São Paulo. No posto de gasolina, ele observa os motoristas e suas jamantas que, aos seus olhos, resumem a vida adulta e a realização pessoal. Um dos caminhoneiros o trata como uma espécie de filho adotivo.
O sonho de São Paulo (título, aliás, de um filme anterior da dupla sobre imigração no Nordeste) é comentado pela presença de Lula, novo arquétipo do nordestino que venceu. Mas as palavras do presidente servem também para sublinhar certos limites entre discurso macro e realidade micro, que não podem ser esquecidos. Ao contrário de Garapa, de José Padilha, que buscava o pior para ilustrar essa defasagem, No Meio do Mundo trabalha na sutileza dos matizes. O que vemos aqui não é a obscenidade da miséria, mas a simples dureza de uma situação aparentemente ainda não alcançada pelos benefícios sociais.
Se o filme de Jean-Pierre e Andrea explora alguma coisa, é somente a intensidade da vida que pulsa naquelas pessoas humildes. São as emoções e os pensamentos à sua maneira profundos de meninos que, ao sairmos do cinema, se tornaram nossos filhos ou irmãos. Num país que ficamos conhecendo um pouco melhor.
UPDATE: É curiosa a relação nominal desse filme com A Pessoa é para o que Nasce. O título francês é Puisque Nous Sommes Nés (Porque Nós Nascemos). Já o título brasileiro lembra a placa de um local onde Roberto Berliner filmou as cantoras cegas: “Meio do Mundo”.
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