O poema de Konstantinos Kaváfis citado no final de Estrada para Ythaca é um elogio da viagem em detrimento do destino. Um louvor ao percurso em detrimento da chegada. Ythaca não seria tanto o objetivo, mas o que nos faz partir e absorver os conhecimentos do trajeto. O filme dos Irmãos Pretti e dos Primos Parente está embebido (literalmente) desse espírito: um road movie perdidão, que começa num bar e termina em outro, em busca de algo que ninguém sabe o que é, mas que afinal não importa tanto assim. Rodado em 2009, premiado no Festival de Tiradentes de 2010 e consagrado como manifesto do Novíssimo Cinema Brasileiro, parecia condenado a permanecer puro trajeto, sem nunca chegar aos cinemas convencionais. Mas eis que, como um OVNI surgido da noite escura, aparece o projeto Sessão Vitrine e o coloca em cartaz em oito capitais brasileiras.
Estrada para Ythaca é o primeiro lançamento de um formato que pretende exibir cada filme durante uma semana numa sala da cidade, em horário único. No Rio, passa até quinta próxima, sempre às 22h, no Cine Jóia (veja aqui a programação em outras cidades). Não é uma estreia de blockbuster, mas funciona para atender minimamente a um público que aprecia a tela grande e para promover o filme em outras mídias. Em seguida virão outros títulos muito esperados, como Estrada Real da Cachaça, Chantal Akerman de Cá, Morro do Céu, Um Lugar ao Sol, Avenida Brasília Formosa, Pacific e Favela on Blast.
Ythaca condensa diversos ingredientes/sintomas de um certo cinema jovem que hoje se faz no Brasil à margem da indústria. Foi realizado sem patrocínio público ou privado, criado e produzido por um grupo de amigos, tem escolhas estéticas bastante definidas e seu tema reverbera de certa maneira as condições em que foi feito. O livro Cinema de Garagem, de Marcelo Ikeda e Dellani Lima, faz a crônica dessa nova cena, com ênfase em suas vertentes cearense e mineira. Em Tiradentes este ano, o quarteto Pretti-Parente apresentou o opus seguinte, Os Monstros, em que confirmam um olhar afetuoso sobre si mesmos e sobre o cinema.
Com suas barbas e chapéus de fancaria, os quatro realizadores-produtores-técnicos-atores saem pelo interior do Ceará numa viagem de luto pela morte de um amigo. Têm algo de Irmãos Marx, embora minimalistas e paradões. Não há limites claros entre a tristeza pelo amigo desaparecido e a celebração bem-humorada da própria amizade. Na verdade, o filme se alimenta de suas suaves contradições. Tem, por exemplo, uma absoluta liberdade ficcional, ao mesmo tempo em que se prende a certos verismos documentais, como as bebedeiras e a difícil preparação de uma fogueira a certo ponto da jornada. É franciscanamente despojado na dramaturgia, mas abre espaço para intrigantes intervenções do sobrenatural. Embora exale aparentes despretensão e esvaziamento, não deixa de semear “mensagens” nas canções, nos letreiros, em frases pronunciadas pelo elenco e sobretudo na citação de Glauber Rocha em Vento Leste, de Godard: entre o cinema de aventuras e o cinema do Terceiro Mundo, o quarteto escolhe o segundo caminho.
Na produção desse jovem cinema brasileiro fora do eixo, o trabalho dos Pretti-Parente se destaca por uma notável unidade de estilo, uma convergência de sentidos entre forma e conteúdo, e a busca constante de uma estética que renove a relação entre atores, câmera e espaços. A construção dos planos quase nunca soa gratuita ou casual, assim como a edição reinventa os ritmos da vida e quebra expectativas rasas, deixando mais ainda à vista a influência de Godard.
O fato de ser um filme feito a quatro (e praticamente só quatro) mãos transparece todo o tempo, seja na câmera empunhada quase sempre por um deles diante dos outros três, seja pelo deslocamento dos personagens em relação a qualquer signo de sociedade ou contexto. Esse voltar-se para si mesmos requer do espectador uma disposição cúmplice e um interesse bastante focado. Há uma circulação de afetos dentro da tela que pode ou não se estender à plateia – e a comunicabilidade do filme depende em grande medida de isso acontecer.
Um dado que pode contribuir muito para a empatia do espectador é o caráter musical do filme. Um musical bêbado, talvez, mas ainda assim um musical. Não só pelas músicas e as performances que incorpora, mas pelo que exclui. Ao atirar CDs de músicas “merda” pela janela do carro, Luiz (ou será Ricardo?) Pretti mostra que um filme musical se faz também pela seleção, pela escolha do que não tocar.
Gostei bastante do Ythaca, é afetivo, despretensioso e os diretores-atores põem a cara a tapa pra mostrar este road-movie. Ythaca é amizade, é o processo de busca como resultado, é um filme que leva ao limite um processo conjunto, de convívio diário em estrada.
Gostei da sua reflexão sobre ser um ‘musical bêbado’, mas me pergunto: será que um filme de nenhum orçamento só tem acesso a trilha musical através da diegêse de bêbados? Eles são intérpretes, cantam as músicas e escapam do direito autoral pois apelam para um ‘senso comum’ musical