Papo de malandro

Onde a Coruja Dorme entra numa merecida segunda semana em quatro salas do Rio. Merece bem mais, pois é um autêntico filme popular, a que o público assiste se divertindo e sai pensando na cidade e no país. A malandragem fundamental de Marcia Derraik e Simplício Neto, desde o curta antológico Coruja de 2001 e o média editado em seguida para a TV, foi lançar mão de Bezerra da Silva como pretexto para mostrar os compositores que faziam samba para ele. Assim, em vez do clássico perfil de um bamba, temos um pequeno filme coral sobre a picardia carioca e o talento de muitos bambas que fazem a crônica extra-oficial da Baixada Fluminense.

Uma crônica cheia de ambiguidades entre a leniência com a contravenção e o elogio do trabalho honesto. O universo da bandidagem, do tráfico, dos alcaguetes e da “cana dura” é motivo de graça e de música, tanto quanto os chifrudos e as sogras com jeito de sapatão. Um mundo essencialmente masculino, claro, mas que não deixa de fazer rir também às mulheres. O roteiro e a montagem do filme potencializam o humor e ao mesmo tempo tratam de revelar a lógica, a ética e o glosário impagável dos “malandros trabalhadores” que cercam Bezerra da Silva. São bombeiros, pedreiros, carteiros e profissionais do copo que não perdem o ritmo porque o trazem no sangue.

De alguma maneira, este é um documentário de época. Pelo tema, porque trata de mitos e regras que parecem fadadas a desaparecer na era de choques de ordem e da pacificação de favelas. E pela forma, porque este é um doc à moda ligeiramente antiga, com falas e músicas “cobertas” por cenas clipadas, uma imagem com cara “de vídeo” e uma espontaneidade que vai ficando para trás em época de docs roteirizados para disputar editais.

Se Onde a Coruja Dorme finalmente pôde chegar aos cinemas nessa versão de longa-metragem (com pouco mais de uma hora) depois de 11 anos, é porque alguma coisa aconteceu no mercado de música e de cinema. Só agora, com o sucesso dos docs musicais, a crise no mercado fonográfico e depois da morte de Bezerra da Silva, as gravadoras finalmente toparam negociar os direitos autorais. Tema, aliás, de muita queixa dos sambistas, que, em vez da cor do dinheiro, só viam a coisa ficar preta pro seu lado. Mas isso é papo de samba. Vai correndo ao cinema que ainda dá tempo de “dar um dois”.

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