PELO MALO (Cabelo Ruim) é o primeiro filme venezuelano lançado comercialmente no Brasil. Mesmo que não fosse por isso, justificaria todo o interesse que vem despertando desde o Festival de San Sebastián, onde ganhou o prêmio máximo. Em torno de um argumento central relativamente limitado – uma mãe desenvolve sentimento homofóbico diante do comportamento ambíguo do filho -, existe uma riqueza de observações sobre os personagens e o caldo cultural popular da Venezuela contemporânea. Enquanto a mãe, uma funcionária de segurança desempregada, tem comportamento masculinizado e moldado pela brutalidade do dia-a-dia caraquenho, o menino apresenta um misto de obsessão edipiana e confusão identitária. Sonha em ser “cantor de cabelo liso”, ao passo que sua melhor amiguinha persegue a estampa das misses que continuam a povoar o imaginário do país. Ao redor deles, o caos urbano, tiroteios e o fantasma dos estupros. Enquanto isso, Chávez agoniza e desperta entre seus partidários uma onda de sacrifícios simbólicos, um dos quais consiste em raspar a cabeça pela recuperação “del presidente”. Em meio à paranoia de gênero e à vulgarização dos sonhos de sucesso, o filme conta, na verdade, a história de uma sensibilidade especial que não encontra ambiente para florescer.
A diretora Mariana Rondón trouxe junto com o filme a tocante videoinstalação “Superbloque”, em cartaz no Centro Cultural da Justiça Federal. O imenso prédio residencial visto em “Pelo Malo” estende-se num telão, filmado a certa distância. Munido de uma folha de papel que serve como tela pessoal, o visitante pode “aproximar-se” visual e auditivamente de algumas varandas. Do geral anônimo do superbloco ele passa à intimidade das células. No fundo, é a mesma operação que o filme promove à sua maneira.
CONFIA EM MIM lança uma pista falsa ao sugerir que é mais um filme sobre amor e gastronomia. Mãos ágeis fatiando legumes e degustação de vinhos são apenas chamarizes para o que na verdade é um bom thriller de vigarice e suspense. Apesar de algumas facilidades dramatúrgicas, a trama envolve e progride com eficiência, o que não é pouco quando se trata de filmes brasileiros do gênero. Paulista até a medula, ainda assim o filme escapa da estética publicitária no rumo de um estilo policial chique. A direção de Michel Tikhomiroff é precisa no ritmo e na condução do elenco, no qual se destacam a vulnerabilidade de Fernanda Machado e a exuberância cênica de Mateus Solano. No fim das contas, o que prometia ser alta cozinha pretensiosa e vazia se revela, felizmente, um gostoso e substancioso cachorro quente. Esse é o tipo de filme popular que merece mais atenção do que tantas comédias vagabundas produzidas no Rio de Janeiro.
Pela segunda vez, Jafar Panahi desafia a proibição de filmar no Irã com um longa autorreferente sobre o tema da clandestinidade. CORTINAS FECHADAS começa como um conto kafkiano: um escritor chega com seu cachorro a uma casa de praia, põe blackout em todas as janelas, raspa a cabeça e se surpreende com a chegada de uma jovem em fuga. Ninguém sabe do que nem por que estão se escondendo. Aos poucos, a situação começa a se esclarecer (ou obscurecer) pela via da metalinguagem. O escritor é o roteirista do próprio filme e a moça, sua personagem. Mas o jogo de perspectivas segue adiante, com o próprio Panahi entrando em cena e deixando claro que, afinal, todos os outros são personagens dele. Mas ao mesmo tempo ele também é um personagem, chegando a haver um momento em que sua imagem se quebra em duas: o diretor e o personagem. O que nos leva ao universo de Abbas Kiarostami, no qual os planos da realidade e da ficção se confundem inapelavelmente. Mas quem nasceu para Panahi nunca vai chegar a ser Kiarostami. “Cortinas” é cifrado demais, arrastado demais para contagiar o público com seu pequeno pesadelo persecutório. Berlim premiou o roteiro, em mais uma decisão daquele festival que só se explica pelo aspecto político. Era preciso prestigiar Panahi e ajudá-lo a fazer o filme circular. De minha parte, mantenho minhas reservas com relação à postura desse diretor. Ele filma em suas casas (“Isto Não é um Filme” no apartamento de Teerã, este agora na casa de veraneio), mas será que precisava exibir os cartazes de seus filmes e mostrar-se sendo fotografado junto com seus fãs? Não tem ali um excesso de autocomplacência e narcisismo? Sei lá, não sei. Acho Panahi meio estranho.
Contei duas sequências de “lutando na chuva”, 55 casacos de pele diferentes e uns 38 nomes de estilos de kung fu em O GRANDE MESTRE, o último Wong Kar-Wai. Talvez de tanto contar, me perdi na história do fim de um clã e do surgimento de um novo mestre, Ip Man, o futuro treinador de Bruce Lee – que aliás nem é citado no filme. Kar-Wai combina à perfeição a técnica de filmagem com a técnica da luta, mostrando que naquela coreografia as pausas bruscas importam mais que os movimentos. O romance entre Ip e a herdeira dos Gong começa em pleno ar, numa das cenas de luta mais mirabolantes do filme. Mas depois a coisa se dilui como sangue na água. No fundo, é mais um exercício de estilo do que qualquer outra coisa. A impressão de vazio se propaga entre efeitos de luz e enquadramentos belíssimos. Podia ser um Poderoso Chefão de Hong Kong, mas parou na prateleira das perfumarias marciais.
Tomei coragem e distância, prendi a respiração por 123 minutos e vi NINFOMANÍACA vol. 2, versão sem cortes. Sem cortes, mas com muitas bofetadas, chibatadas e automutilações. Para minha relativa surpresa, desgostei menos do que da primeira parte. Talvez porque há menos conversa fiada entre Joe e seu confidente Seligman, muito embora ainda haja muito papo-Wikipedia, piadinhas baratas e psicologismo de pacotilha. Mas pelo menos Von Trier consegue articular alguma coisa que lembra de longe os temas de Sade e Bataille. Um dos episódios chega a ser bem interessante: a relação entre Joe e P., a menina que ela adota e com quem desenvolve múltiplos e intrigantes laços. Mais do que qualquer obscenidade, Von Trier quer provocar o nosso olhar perante o que é considerado moralmente abjeto. Ele fala pela boca de Charlotte Gainsbourg quando critica o politicamente correto e demonstra compaixão por pedófilos reprimidos e todos os que “nascem com alguma sexualidade proibida”. “Ninfomaníaca” está longe de ser um bom filme, mas talvez seja a expressão mais crua e assumida de um desejo latente em toda a obra e declarações do diretor, o de questionar a boa conduta e desestabilizar a passividade do espectador perante o que é dado como líquido e certo.
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