Nos seus primeiros filmes Alain Resnais falava sobre o amor, a morte, a memória e a fantasia de maneira solenemente intelectual, como alguém que abria caminho na complexidade desses temas e ao mesmo tempo na linguagem cinematográfica. Em seus últimos trabalhos, ele continuou falando das mesmas coisas, mas numa chave lúdica e aparentemente despretensiosa, como alguém que já conhece todos os caminhos, principalmente aqueles que ligam o cinema ao teatro. AMAR, BEBER E CANTAR é mais um desses divertimentos cheios de segundas intenções. George Riley, o personagem principal, nunca aparece, assim como muitos outros que se escondem por trás das tapadeiras do palco ou da quarta parede da cena filmada. George, na verdade, é uma projeção dos desejos, lembranças, fantasias, segredos, temores e suposições dos amigos que recebem a notícia de sua morte próxima enquanto ensaiam uma peça amadora. Resnais brinca com esses espaços invisíveis aos outros, mas que carregamos como constituintes da nossa própria existência e só vêm à tona na forma de neuroses. Por trás das tapadeiras dessa comédia leve e amável, há um estudo delicado da alma humana. A última cena do último filme desse mestre é mais uma boutade com a morte, prova de que o artista se divertiu tanto quanto esse George que apenas podemos imaginar.
Tenho ouvido opiniões contraditórias sobre O MELHOR LANCE, de Giuseppe Tornatore. Desconfio que todas têm razão. Por um lado, é um espetáculo muito bem cuidado, com uma interpretação requintada de Geoffrey Rush, trilha discreta mas bonita de Ennio Morricone e um pouco daquele sentimento comum a “Cinema Paradiso”: o encontro com obras de arte perdidas no tempo. Mas também é um filme muito servil à estrutura dos best-sellers, com um mistério no centro, duas investigações correndo paralelas, referências superficiais à alta cultura e personagens cuja função parece somente a de fazer a trama avançar através dos diálogos. Mais grave ainda, é uma trama ao mesmo tempo mirabolante e previsível, além de bastante inverossímil em se tratando de um personagem como o experiente leiloeiro vivido por Rush. De uma história sobre fraudes e falsificações, o que esperar senão fraude e falsificação? Tornatore nos serve um filme com cara de obra de arte, mas que não passaria pelo crivo de um bom perito.
AOS VENTOS QUE VIRÃO mostra que a discussão sobre o cangaço ainda não está esgotada no cinema brasileiro. Se o foco dos velhos filmes do gênero era muitas vezes o dilema entre ser ou não cangaceiro, o novo filme de Hermano Penna conta uma história exemplar do período após a morte de Lampião. O ex-cangaceiro José Olimpio escapa da perseguição, leva vida de operário em São Paulo e, de volta à Sergipe natal, tenta carreira política até perceber que precisa voltar a ser cangaceiro para lutar contra as estruturas viciadas da democracia interiorana nos anos 1950. A dicotomia entre lei e revolta se apresenta, portanto, no presente e no passado do filme. O desfecho surpreendente faz escorrer uma mancha de sangue sobre os sonhos de normalidade do governo JK. Hermano Penna fez um filme sóbrio e interessante como percurso de um herói trágico, cindido pelas hesitações, a ingenuidade e a culpa. É isso que o impede de se transformar num novo Lula, papel vivido pelo mesmo Rui Ricardo Diaz no cinema. Pena que a narrativa seja apenas funcional, sem muita invenção, e não explique adequadamente a passagem de José Olimpio da condição de operário para a de celebridade em Sergipe. Os estereótipos (o militar impiedoso, o feitor de obras, o político oportunista) também reduzem a eficácia da encenação, assim como a má atuação de alguns coadjuvantes. Bem resolvido tecnicamente, com um pouco mais de cuidado no roteiro e sutileza na direção teríamos um legítimo herdeiro do clássico “O Homem que Virou Suco”.
P.S. Não confundir com “Aos Ventos do Futuro”, que Hermano Penna realizou em 1987 sobre a questão indígena.
Gostei muito de conhecer esta semana o Cine-teatro Eduardo Coutinho e a Biblioteca Parque de Manguinhos. Inaugurado há pouco mais de um mês, o cinema cobra meio ingresso de 4 reais para estudantes, idosos e moradores do Complexo de Manguinhos. Mesmo assim, os programadores Beto Moreira e Tatyana Paiva têm recorrido a blockbusters 3D como estratégia de atração de um público inicial. A sala de 202 lugares está equipada com projetor Barco 2K e som digital surround 5.1. A qualidade põe no chinelo a grande maioria dos cinemas da cidade. Ontem foi dia da primeira sessão do Cineclube Manguinhos, com entrada franca e a exibição de “Jogo de Cena”, de Coutinho, seguido por um bate-papo comigo e a cineasta Cristina Grumbach, assistente e pesquisadora deste e de outros filmes de Coutinho. Havia cerca de 80 pessoas na sessão, público composto por estudantes, famílias e gente ligada ao grupo Manguinhos em Cena, que ocupa o teatro. A emoção de conversar sobre o Coutinho e sua obra era palpável no ar. Duas horas depois de terminado o filme, ainda tinha gente querendo fazer perguntas e considerações sobre o filme.
Conheci rapidamente os demais espaços da biblioteca, dotada de salas de estudo, leitura e reuniões, serviços para portadores de necessidades especiais, catálogo bibliográfico on line, espaço infantil e jardim de leitura. Em seus 2,3 mil metros quadrados pode-se acessar as estantes de livros e a internet, ver filmes, ouvir músicas, participar de atividades culturais ou solicitar o empréstimo de livros e filmes, entre os mais de 27 mil títulos. Só senti falta de uma lanchonete ou cafeteria para humanizar ainda mais o espaço. Mas a impressão de profissionalismo, limpeza, segurança e gentileza perpassa cada ambiente. Numa área recuperada da criminalidade pelo governo estadual, esse espaço integrado ao projeto Favela Criativa é um exemplo de ação do poder público em benefício da comunidade. A secretária de cultura Adriana Rattes está de parabéns.
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