Ecos do festival

A minha experiência mais dolorosa do Festival do Rio este ano foi assistir ao documentário ÁGUA PRATEADA – UM AUTORRETRATO DA SÍRIA. O realizador Ossama Mohammed, exilado na França, coletou centenas de filmagens dos massacres conduzidos pelo exército de Assad, aí incluídas imagens de celulares, câmeras amadoras portadas por populares e ativistas, e cenas rodadas por soldados. São coisas muito duras de se ver, como crianças morrendo no meio da rua e torturas bárbaras infligidas aos presos. A partir de certo ponto, o filme passa a seguir a troca de correspondência entre Ossama e a síria de origem curda Wiam Simav Bedirxan, que, depois de perder os pais, se aventurava com sua câmera pelas ruas da cidade de Homs em escombros. Simav, em curdo, significa “água prateada”, daí o título do filme. As cenas filmadas por Simav e enviadas pela internet a Ossama revelam a tensão, a dor e a resiliência dos que teimavam em sobreviver em meio a snipers e à ferocidade de uma ditadura sanguinária. A narração em off de Ossama e Simav formam uma espécie de mantra sobre a tragédia de um país e o papel que o cinema pode desempenhar em torná-la patente, indesmentível e comum a toda a Humanidade.

Uma das melhores sequências que vi no festival:
No clássico melodrama mexicano A MULHER DO PORTO (1934), a protagonista está acompanhando o caixão do pai recém-falecido numa carroça pelas ruas da cidade de Veracruz. Na contramão vem um cortejo de carnaval, e os foliões pensam tratar-se de um carro alegórico, algo como “O enterro das tristezas”. Começam a festejá-lo enquanto a moça chora desesperada. Em dado momento, as pessoas começam a se dar conta de que se trata mesmo de um féretro, de um homem conhecido por todos, e mudam rapidamente de atitude. Tiram as máscaras e chapéus, e passam a seguir o caixão silenciosamente, ainda com suas fantasias cobertas de confete.

Algumas decepções importantes que não resenhei no blog:
CINCO ESTRELAS, de Keith Miller – roteiro déja-vu sobre gangues e redenção no Brooklyn, naturalismo aborrecido, crença exagerada no aporte documental para valorizar uma ficção sem brilho.
QUE CARAMBA É A VIDA, de Doris Dörrie – mulheres mariachis mexicanas em abordagem superficial e preguiçosa, visão estrangeira descaracterizada, perda de uma grande oportunidade de investigar um fenômeno musical e sociológico interessante.
CANÇÕES DO NORTE, de Yoo Soon-Mi – vinhetas sobre arte e propaganda política na Coreia do Norte usadas sem muito critério nem criatividade, enfoque pessoal mal explorado, roteiro dispersivo, excesso de textos para contextualizar o que a montagem não consegue.
QUATRO CANTOS – gangues da Cidade do Cabo encenadas com muita pose, ênfases e brutalismo, apelo ao melodrama fácil, excesso de metragem para a limitação básica da trama.
O PRESIDENTE, de Mohsen Makhmalbaf – fábula/parábola sobre ditadura, revolução e revanchismo contada sem sutileza e com muitas obviedades, mão pesada na direção, overdose de dramaticidade que acaba sabotando as boas intenções.

Um comentário sobre “Ecos do festival

  1. Pingback: Festival do Rio: Últimos Homens em Aleppo | carmattos

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