Vou publicar aqui pequenos comentários sobre os filmes vistos no festival. Voltem diariamente para conferir os novos textos a partir do topo. E comentem à vontade.
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PROCURANDO FELA KUTI
Programado na repescagem do festival, esse documentário do premiado Alex Gibney parte de uma montagem do espetáculo Fela! The Musical na Broadway para recontar a história do lendário músico e ativista nigeriano. Embora force um pouco o paralelo entre o Fela Kuti do palco e o personagem real, como se eles praticamente se equivalessem, o filme não deixa de ter seu valor como resgate de uma história tão movimentada quanto fascinante.
Fela Anikulapo Kuti (1938-1997) reuniu em si várias contradições do homus africanus. Combinou influências do jazz americano com o suingue subsaariano. Formou-se em Londres mas fez carreira na África. Confrontou ditaduras com a mensagem de Malcolm X e ao mesmo tempo foi o onipotente dono de um harém de até 27 esposas simultâneas. Foi preso político durante quase dois anos e teve seu clube destruído, mas também foi acusado de embolsar o pagamento dos seus músicos. Tentou uma candidatura à presidência da Nigéria e passou um tempo cultuando um guru egípcio que era a impostura em pessoa. Morreu de Aids em decorrência de promiscuidade sexual.
O filme não foge muito ao formato tradicional de entrevistas, shows e materiais de arquivo, mas tudo é concatenado de modo a situar Fela Kuti na África do seu tempo, seja do ponto de vista cultural, seja do político. A admiração pelo artista não impede que ele apareça em toda a sua complexidade. E as performances originais, eletrizantes pela batida do afrobeat e a energia do seu criador, ganham muito na passagem do Youtube para a tela grande e o som potente do cinema. Ao chegar na Broadway, sua história deixava de ser vivida para ser ilustrada. Gibney pegou uma boa carona e retribuiu com toques de making of luxuoso. ♦ ♦ ♦
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JIMMY’S HALL
Ken Loach é tão fiel ao seu ideário de humanismo socialista que tanto pode produzir com ele uma obra-prima como Terra e Liberdade quanto um quase-panfleto como esse Jimmy’s Hall. Não há como não ficar do lado de Jimmy Graulton, seus bravos companheiros trabalhadores e os jovens idealistas que se reúnem para aprender, dançar e fazer política num salão da Irlanda profunda nos anos 1930. Mas a mensagem fica bastante esquemática quando do outro lado temos um padre anticomunista caricato, um ogro conservador que espanca a filha e uma polícia que só faz cumprir ordens reacionárias. A coisa toma ares de velha novela de TV, com forças políticas representadas em poucos personagens estereotipados.
Ainda assim, é preciso reconhecer que Loach dribla o material ralo com sua habitual perícia em combinar romance, humor e consciência social. Jimmy, eterno condenado ao exílio em Nova York, tem tempo suficiente para deixar sua marca no coração de uma conterrânea e na ética política de uma garotada gente boa. O colorido rural, a música e as danças regionais energizam e dão calor a um filme desprovido de maiores novidades, mas nem por isso desinteressante. ♦ ♦ ♦
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BRINCANTE
Público feliz aplaudindo Brincante na sessão do São Luiz. O filme de Walter Carvalho é um ensaio de road movie que serve às performances de Antonio Nóbrega, Rosane Almeida e o seu grupo de dança. A bordo de sua fubica, o casal sai de Recife, se aventura pelo agreste pernambucano e chega a São Paulo.
As apresentações se dão ora em estúdio, ora ao ar livre, e fazem o percurso entre o arcaico e o contemporâneo. No Nordeste, ancora-se na tradição do picadeiro e dos espetáculos mambembes. Em SP, espalha-se em palcos e intervenções coreográficas no espaço urbano segundo a estética dos flashmobs. Villa-Lobos, canções picarescas e números instrumentais se alternam sem disfarçar muito o aspecto fragmentário, numa espécie de portifólio do trabalho incansável de Nóbrega, um artista completo que encarna todo um repertório profundamente brasileiro. A fotografia de Jacques Cheuiche é simplesmente magnífica, assim como os trabalhos de som e montagem.
Nos créditos finais, uma animação stop motion de Gabriel Nóbrega (filho de Antonio) fecha com chave de ouro um filme que é puro deleite. Depois do DVD Lunário Perpétuo e da Ocupação no Itaú Cultural, Walter Carvalho acrescenta mais um belo tijolo em seu edifício Antonio Nóbrega. ♦ ♦ ♦
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CAVALO DINHEIRO
Um sonho, uma alucinação, uma fantasmagoria de imaginação enferma… Não há como definir Cavalo Dinheiro fora da esfera da irrealidade. E no entanto o filme se refere todo o tempo à imigração, à herança colonial, à Revolução dos Cravos, ao desemprego, ao sucateamento da indústria portuguesa. Pedro Costa mira o real com a luneta do onírico.
Pela quarta vez, ele se vale do ator-personagem Ventura, o imigrante cabo-verdiano que protagonizou Juventude em Marcha e três segmentos do diretor em filmes de episódios. Ventura, com sua forma peculiar de falar e se mover em cena, atende ao desejo de Pedro Costa de trabalhar à margem da dramaturgia naturalista, expressando-se quase sempre através de tableaux vivos, com atores semi-estáticos entre feixes de luz e sombra. A proporção da tela aqui é quadrada, opção de todo realizador chique atualmente.
Em Cavalo Dinheiro, Ventura está velho, com mal de Parkinson e hospitalizado não se sabe há quanto tempo. O tempo, aliás, é um dispositivo móvel no qual Ventura se desloca sem mudar de figura entre 1974 e 2013. Ele se refere à época da Revolução de Abril como se fosse hoje, quando foi preso e teve desfeito seu projeto de casamento com a conterrânea Zulmira. No hospital, recebe visitas que soam como ecos do seu passado. Em suas deambulações – imaginárias ou não – ele passa por oficinas e fábricas arruinadas, povoando como um espectro o mundo do trabalho que o teria expulsado como a tantos operários e imigrantes na crise que abala Portugal. Uma sequência especialmente longa transcorre dentro de um elevador, onde Ventura troca impressões com um soldado-estátua imobilizado, como ele, desde 1974.
Tudo é pictoricamente lindo, embora monótono e sonambúlico. Para apreciar essa estranha forma de beleza é preciso deixar de lado as expectativas de narratividade e embarcar no fluxo de ressonâncias, cantos tristes e ruminações que juntam o passado e o presente num palimpsesto audiovisual. ♦ ♦ ♦
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COMING HOME
É muito bom ver Zhang Yimou voltar às suas origens, o melodrama, em detrimento dos espetáculos grandiosos ou oficiais que andou fazendo. Coming Home não deixa de bater na tecla gasta da crítica ao maoísmo, mas o faz com maior leveza, privilegiando o drama psicológico ao proselitismo político.
A história gira em torno de uma mulher (Gong Li, mais uma volta ao passado) que perde parte da memória depois de um trauma e não mais reconhece o marido quando este retorna de um longo período em campos de trabalho, nos anos 1960. A filha deles, antes entusiasmada com os excessos da Revolução Cultural, tenta agora colaborar na recomposição da família. Os esforços do marido para reavivar a memória da mulher através do método do déja vu rendem algumas das cenas mais comoventes que Yimou já construiu.
Este é um filme sobre reabilitação: política, clínica e sentimental. Mostra que nem tudo é passível de ser recuperado, mas que a tragédia pode ser minorada pela persistência e a lealdade. Para o diretor, é também uma metáfora da memória histórica que não deve ser apagada. Para o espectador, é a reativação da presença de um cineasta magistral em seu classicismo impecável. ♦ ♦ ♦ ♦
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CARVÃO NEGRO
Este vencedor do último Festival de Berlim não tem a estatura de um Urso de Ouro, mas convence razoavelmente como exercício chinês de filme noir. Os ingredientes estão lá: um ex-policial investigando por conta própria, uma mulher fatal, um assassino em série portando estranha arma, uma lavanderia (chinesa, claro) no centro da trama, muito neon, recintos esfumaçados e até uma cena dentro de um cinema. Cultor do gênero, o diretor Diao Yinan sabe manter seus personagens numa bruma moral enquanto desfaz gradativamente as dobras da trama.
O ambiente industrial confere ao filme um aspecto sombrio, que nem a possibilidade de um romance consegue iluminar. O amor, aliás, terá papel central no enredo, juntamente com pedaços de cadáveres aparecendo em caminhões e vagões de carvão. A interpretação abúlica da atriz Lun Mei Gwei, aparentemente inadequada ao papel, acaba servindo às sucessivas revelações sobre a personagem. A direção é segura e a fotografia explora bem os constrastes entre a escuridão e as luzes frias do inverno, mas o roteiro é bastante confuso no início e um tanto arrastado no final. Mas se o filme, a meu ver, não justifica um prêmio como o de Berlim é principalmente porque não transcende em quase nada as convenções do gênero. ♦ ♦
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MOMMY
À primeira vista, o quinto filme do ex-menino prodígio Xavier Dolan parece confirmar um realizador corajoso e que domina cada vez mais seu universo temático e as ferramentas de uma narrativa autoral. Lidando mais uma vez com a relação mãe-filho (como no seu longa de estreia, Eu Matei Minha Mãe), ele coloca dessa vez o foco dos problemas no garoto e o ponto de vista na mãe. Steve tem transtornos de hiperatividade e déficit de atenção, o que o faz comportar-se de maneira caótica e ter surtos de violência. Diane o cria sozinha na esperança de uma melhora que nunca vem. Quando uma família se muda para a casa em frente, ela passa a receber a ajuda de Kyla, uma jovem com distúrbios de ansiedade que ocasionalmente funcionará como um anjo da guarda para Steve.
A questão psiquiátrica e as oscilações de afeto entre os três parecem bem desenvolvidas e defendidas com garra pelo elenco em interpretações sempre muito tensas ou expansivas no dialeto québequois. Entretanto, o filme é tão sobrecarregado de maneirismos que incomoda não só pelo tema, mas também pelo estilo. Mãe e filho, principalmente, se expressam com uma overdose de “caras e bocas”, como se tudo precisasse ser sublinhado facialmente para impactar a plateia. A mais ou menos cada 15 minutos a história se interrompe para brindar o público com uma canção, o que já constitui um lugar-comum dos filmes que almejam se conectar com espectadores jovens. A câmera faz do foco um gadget que tem mais a ver com caprichos do que com necessidades de exposição. O uso da tela quadrada (novo modismo no cinema internacional inspirado pelas telas de celular) é destinado a comprimir os personagens nos limites estreitos de uma vida difícil, abrindo-se para o formato normal somente em dois interlúdios de bem-estar ou imaginação. Na medida em que prolifera sem maiores justificativas, isso também tende a se tornar um efeito maneirista.
Mommy é atravancado ainda por algumas implausibilidades, como a alienação mal explicada de Kyla em relação a sua própria família, a despropositada sequência do karaokê, a falta de socorro dos presentes na cena do supermercado e a violência no momento de uma internação. Provavelmente para justificar essa última, foram acrescentadas referências a uma nova lei que teria sido implantada no “Canadá fictício de 1915”. Recurso picareta, sem dúvida, que não justifica colocar a falsificação dramática acima da verossimilhança em narrativa de tal apelo naturalista.
Mommy ganhou o Prêmio do Júri no Festival de Cannes e tem sido muito festejado pela força cinética que jorra da tela. Mas suas deficiências e excessos revelam que Xavier Dolan ainda não amadureceu. Apenas malhou os músculos. ♦ ♦
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FALANDO COM DEUSES
É curioso que num filme sobre as relações entre homens e religiões tanta ênfase seja colocada em aspectos materiais, com personagens empenhados em duras tarefas físicas e contatos ásperos com a natureza. No primeiro episódio, uma mulher grávida dá à luz sozinha num descampado australiano. Hector Babenco escala Chico Diaz numa performance meyerholdiana carregando um pato nos braços através da cidade de São Paulo e dentro de uma roda de candomblé. Emir Kusturica escala a si mesmo como um Sísifo da igreja ortodoxa que arrasta sacos de pedras montanha acima. Amos Gitai constrói mais um de seus famosos planos-sequência combinando textos sagrados, cantos e confrontos de rua entre policiais e manifestantes. Alex de la Iglesia confronta um matador baleado em fuga com um moribundo cheio de sabedoria. Guillermo Arriaga, curador e produtor do projeto, mostra a realização da profecia de um suicida, que cobre a terra com uma chuva de sangue.
Apesar dessa frequência de ingredientes rústicos, são bem diferenciadas as formas como cada diretor se desincumbiu da encomenda. Alguns foram solenes, como o japonês Hideo Nakata, que enfocou o luto de um homem depois de perder a família nos acidentes de Fukushima. Outros optaram por um olhar bem-humorado sobre a fé. Entre estes, Mira Nair fracassa com as formas brincalhonas com que os deuses indianos aparecem a um menino da classe alta de Mumbai. Já o iraniano Bahman Ghobadi assina o segmento mais insólito e divertido de todos: dois irmãos siameses unidos pela cabeça disputam entre o temor a Deus e os apelos do pecado. A ideia é brilhantemente conduzida também na maneira de filmar, baseada nos pontos de vista subjetivos de cada irmão.
Em Falando com Deuses, a diversidade é uma qualidade, o que nem sempre acontece em filmes de episódios. O tema permite enfoques variados e envolve uma espécie de charada na forma como cada cineasta encarou a crença no que está além do visível, seja na vida, seja na tela. ♦ ♦ ♦
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NATIONAL GALLERY
Houve um tempo em que Frederick Wiseman filmava hospitais psiquiátricos, tribunais, abrigos para mulheres vítimas de violência doméstica, projetos residenciais, etc. A natureza dessas instituições provia os dramas e conflitos necessários à sua postura de não interferência. De uns anos para cá, ele tem se dedicado a documentar espaços de cultura e entretenimento em que as únicas instâncias dramáticas são eventuais discussões de orçamento ou de iluminação. Isso reduz bastante a voltagem dos filmes, que podem facilmente se confundir com institucionais de luxo.
Sei que isso pode soar ofensivo para os fãs incondicionais do grande documentarista. Mas National Gallery é mais um exemplo dessa perda de gume, em que pese toda a perícia empregada na sua execução. O filme promove uma funda imersão do espectador nos salões e bastidores do museu londrino, enfocando preleções de guias, aulas e monitorias para diversos tipos de público (inclusive deficientes visuais), sessões de pintura com modelos nus, conversas sobre disposição de quadros e de luzes, explanações de restauradores, confecção de molduras, reuniões da diretoria e – o mais belo de tudo – o diálogo silencioso entre o público absorto e as personagens das telas de Rembrandt, Ticiano, Rubens, Vermeer…
Wiseman cuidou da montagem do filme, o que pode explicar um apego excessivo por certos aspectos. Sobretudo as tecnicalidades de restauração e retoques se estendem para o campo do interesse puramente museográfico. Como toda visita a grandes museus, o deslumbramento acaba concorrendo com o cansaço. Restam a beleza das obras, a retórica expansiva dos profissionais enfocados e as lições de olhar oferecidas. Isso compensa a longa jornada de quase três horas. ♦ ♦ ♦
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A VOZ DE SOKUROV
Que ninguém espere desse documentário da finlandesa Leena Kilpeläinen um jato de iluminação sobre a obra de Alexander Sokurov. Pelo contrário. Embora incorpore cenas de quase todos os filmes do diretor russo e considerações dele sobre arte e política, o efeito é de obscurecer ainda mais um pensamento cinematográfico já enigmático e ambíguo.
A inserção de excertos de filmes segue uma linha razoavelmente cronológica, mas chegam à tela com uma relação muito tênue com as declarações do cineasta. Estas, por sua vez, são dispostas de maneira fragmentada, soando como frases descontextualizadas e um tanto peremptórias. Alguns exemplos: “O cinema é um erro digno de uma vida”; “A democracia não precisa da arte, pois segue o gosto dos consumidores. As ditaduras é que precisam da arte”; “A cultura resiste à arte. É apenas um pântano bonito”.
De maneira geral, o Sokurov que desponta desse filme é o pessimista militante, desencantado com a cultura contemporânea, à qual faltariam princípios humanistas. Sobre a Rússia atual, lamenta a ausência de ideologia e cultura, o que parece uma contradição ao seu discurso de rejeição aos conceitos de cultura e de estado ideológico. A sua história de luta contra a censura e a banalização do cinema não encontra contrapartida em nenhum modelo alternativo. Ele questiona até o apoio que Putin, de quem é adversário político, prestou à realização do seu Fausto.
Imagens aleatórias de São Petersburgo e uma notável confusão de materiais de arquivo só fazem tornar mais opaco um filme que, supostamente, pretendia fornecer transparência. ♦ ♦
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BOYHOOD – DA INFÂNCIA À JUVENTUDE
A gente sabe que todo filme de ficção é, em certa medida, um documentário sobre o estado de seus atores, uma vez que eles emprestam seu corpo, seu olhar, suas inflexões e muito mais de sua natureza aos personagens que interpretam. Boyhood – Da Infância à Juventude leva essa premissa a um ponto talvez inédito no cinema ficcional. Richard Linklater filmou a história de uma família durante 12 anos reais, acompanhando o crescimento dos atores infantis e as mudanças dos adultos. Uma história de amadurecimento, descobertas e bruscas alterações de modo de vida no Texas do período 2002-2013.
Afora o talento de Linklater na escrita dos diálogos e na direção dos atores, o que encanta no filme é a oportunidade de assistirmos a um simulacro de vida inteiramente contaminado pela vida mesma. Cada fase do roteiro foi escrita na época da filmagem, assim incorporando fatos, modismos, referências e sobretudo a situação física e emocional dos atores, em especial do protagonista Mason Jr. (Ellar Coltrane) e de sua irmã Samantha (Lorelei Linklater, filha do diretor). Nenhum filme com representação mais convencional seria capaz de figurar aquela dinâmica de ganhos e perdas de peso, modificações de conduta corporal e de temperamento que tanto surpreendem na vida real. O amálgama de verdade íntima e invenção dramatúrgica dá a Boyhood um caráter único e uma sedução particular no cinema contemporâneo.
Mason e Samantha crescem diante de nossos olhos, como pessoas que visitássemos com certa regularidade e que sempre apresentassem algo de novo na maneira de ser. As relações dos meninos com o pai gente boa (Ethan Hawke), a mãe de vida confusa (Patricia Arquette) e os sucessivos padrastos autoritários não deixam de responder a certos requisitos da dramaturgia hegemônica. Estes, porém, estão aqui despidos de quase todos os artifícios, à exceção do reencontro com o ex-operário no restaurante. A impressão de naturalidade cuidadosamente construída é que nos arrasta para o humor e a angústia daquele menino e daquela família em busca de nada maior que a si mesmos. ♦ ♦ ♦ ♦ ♦
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IDA
O filme polonês sensação deste festival chama tanta atenção para seu formato que nos obriga a cogitar sobre ele. A tela quadrada e a imagem em preto e branco remetem ao cinema de outras épocas, especialmente se pensamos em clássicos sobre figuras místicas como A Paixão de Joana D’Arc, Viridiana e o também polonês Madre Joana dos Anjos. Ida se passa nos anos 1970, quando os ecos da II Guerra ainda eram bem mais presentes do que hoje. Uma jovem noviça, às vésperas de fazer seus votos, é instada a visitar uma tia que nunca conhecera. Ela se deixa fascinar pela mulher madura, sensual e experiente, que ainda por cima tem uma revelação importante para lhe fazer: a de que ela, Ida, era judia, filha de pais mortos durante a guerra. As duas partem, então, em busca de vestígios da família, e Ida terá a oportunidade de testar sua dedicação exclusiva a Deus.
Outro aspecto incontornável das imagens de Ida são os enquadramentos inusitados, quase sempre “enterrando” as personagens no fundo do quadro e deixando uma considerável “sobra” de cenário acima delas. Mais que isso, os corpos das pessoas aparecem frequentemente cortados, como se tivessem sido decepados pelos limites da tela. Uma incômoda sensação nos leva a considerar as perdas e amputações que a História impôs àquelas criaturas no que diz respeito a suas famílias, origens e identidade. O mesmo se dá com as paisagens e espaços internos. A fratura e a incompletude gritam na composição das imagens.
O diretor e corroteirista Pawel Pawlikowski ensaia uma narrativa por estereótipos – a doce e puríssima Ida versus a cínica e arrogante Wanda – apenas para miná-los pouco a pouco, à medida que elas se aproximam de uma verdade enterrada no passado. De repente, estamos diante de duas mulheres que julgávamos conhecer, mas que se revelam cheias de surpresas. No fim das contas, é mais uma vez a forma – a sobriedade do estilo, as poucas falas e a intensidade dos silêncios – que nos faz enxergar ali um filme cheio de beleza. ♦ ♦ ♦ ♦
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REMAKE REMIX RIPOFF
A Rua Yeșilçam está para Istambul como a Rua do Triunfo está para a Boca do Lixo Paulista. Ali floresceu um centro de produção de cinema barato e popular nos anos 1960 a 80, baseado sobretudo em paródias de filmes de gênero americanos. Esse documentário de Cem Kaya, diretor radicado na Alemanha, faz uma crônica bem-humorada dos anos de ouro do trash turco com a participação assumidamente franca de diversos diretores, atores e produtores da época.
Como sugere o título, não se tratava apenas de fazer versões turcas de sucessos como Super-Homem, O Exorcista e Tubarão. Os filmes usavam sem pudor planos e músicas dos originais, alguns repetidos à exaustão em cenas dos mais diferentes teores. A montagem do documentário evidencia a recorrência desses elementos e de clichês com um efeito hilariante, que expõe os vícios e deficiências ao mesmo tempo em que rende uma homenagem ao heroísmo de um cinema legitimamente popular. O público, majoritariamente rural e ainda desprovido da televisão – que entrou bem tarde no país -, transformava aqueles frankensteins cinematográficos em grandes estouros de bilheteria.
A subida da direita ao poder após o golpe militar de 1980 instituiu a censura e desmobilizou Yeșilçam a ponto de só restar o gênero pornográfico. Remake Remix Ripoff estende sua historiografia até o ano de 2013, quando as séries de TV herdavam a tradição e as carências daquele período, e um movimento popular tentava inutilmente impedir a demolição do mítico cinema Emek, símbolo maior da cinefilia de Istambul. Talvez influenciado pela má escritura dos filmes que aborda, Cem Kaya comete um único erro grave: recomeça a contar a mesma história depois de atingir um ápice de alto teor político. Gera um anticlímax e passa a sensação de estender-se além da conta. Mas até ali, seu filme é puro prazer e descoberta de um firmamento de cartolina. ♦ ♦ ♦ ♦
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FELIZ POR SER DIFERENTE
Alguns dos entrevistados em Feliz por Ser Diferente poderiam ter inspirado o personagem de Marcello Mastroianni em Um Dia Muito Especial, o clássico de Ettore Scola sobre a condição homossexual durante o fascismo. São todos respeitáveis senhores dispostos a contar suas histórias de amor, coragem, vergonha, discriminação, subterfúgios e busca da felicidade. Os mais velhos chegaram a viver os tempos de Mussolini, quando a homofobia permeava a ideologia oficial mas o olhar de fascinação pelo corpo masculino se espalhava nos esportes, na escultura, etc.
Gianni Amelio declarou-se homossexual no ano passado, justamente enquanto preparava esse documentário. Com um método simples de entrevistas frontais, de cada personagem ele extrai um ângulo diferente sobre a relação entre indivíduo e sociedade na Itália da segunda metade do século XX. Tem aquele que rejeitou enquanto pôde suas preferências; o que passou por hospital psiquiátrico; o que encontrou tranquilidade no ambiente conservador da Democracia Cristã; o que se casou com uma lésbica; o que chora a perda do prazer sexual depois de uma operação de mudança de sexo; há, enfim, o que condena a expressão “gay” por ter eliminado “a diversidade da diversidade”. Antes havia o “finocchio”, o “frocio”, o “richione”, o “culattone”. Agora, segundo ele, “a palavra gay uniformizou tudo, como neon na cozinha”.
Estão lá desde homens solitários a artistas de ego inflado, todos portadores de algum tipo de carisma. Ninetto Davoli poderia ter compartilhado um pouco mais sobre a relação com Pasolini, mas sua simples presença diante da câmera já valoriza o filme. O dossiê é completado por cenas de arquivo dos entrevistados, peças de propaganda e iconografia homofóbicas, um documentário sobre clínica de “cura gay” e trechos de cinejornais, perfazendo um painel interessante sobre a vida dos “diferentes” no país das grandes contradições religiosas e políticas. ♦ ♦ ♦
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PARTY GIRL
Uma prostituta sexagenária de cabarés na divisa entre França e Alemanha resolve aceitar o pedido de casamento de um cliente e tentar uma mudança de vida. Mas como será deitar-se com um homem em ambiente doméstico e deixar para trás toda uma vida de festas e descompromisso? Mais ainda, como formar uma família quando seus quatro filhos reagem de maneiras diferentes à virtual ausência da mãe por todos aqueles anos?
Esse material, digno de um filme de Mike Leigh, chega ainda mais potente à tela quando se sabe que quase todos os atores – inclusive Angélique e seus filhos – estão desempenhando seus papéis reais, e que um dos filhos, Samuel Theis, escreveu o argumento e integra a trinca de diretores. Desse amálgama de ficção e inspiração verídica, que certamente valeu o prêmio Caméra d’Or em Cannes, Party Girl tira suas virtudes e também suas limitações.
O naturalismo radical da encenação – que pode lembrar ainda Cassavetes ou Pialat – arrasta o espectador para dentro de uma experiência familiar bastante insólita e cria momentos intensos, como as trocas entre Angélique a Cynthia, a filha mais nova criada por uma mãe adotiva, e os pronunciamentos dos filhos no casamento. Mas esse mesmo naturalismo deixa entrever que o aspecto documental não foi suficiente para superar a mera exposição de um impasse. Cru e ocasionalmente tocante, o filme talvez ganhasse ao se descolar um pouco mais de sua plataforma de autenticidade. ♦ ♦
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PORQUE TEMOS ESPERANÇA
Depois de Cativas – Presas pelo Coração, de Joana Nin, que levou uma menção honrosa no festival do ano passado, mais uma visão do universo penitenciário pelo ângulo das afetividades chega à Première Brasil. Porque Temos Esperança, de Susanna Lira, vai ao encontro de presidiários que não reconheceram legalmente seus filhos ou não foram reconhecidos pelos seus pais. Num dos casos enfocados, um detento admite dar seu nome ao filho e simultaneamente aceita receber o nome do seu padrasto.
A ausência do pai é um tema caro à diretora, que tem outro projeto inspirado em sua própria experiência (comum a este crítico, por sinal). Se na vida em liberdade, o não reconhecimento paterno pode ser uma lacuna impreenchível, que dirá entre pais e filhos separados pelas grades. O filme se aproxima do tema através de Marli, uma mulher de Recife que, após ser deixada pelo pai do seu filho logo após o parto, iniciou uma militância que a levou a fundar, há 22 anos, a Associação Pernambucana de Mães Solteiras. Em notável cumplicidade com Marli, Susanna acompanha suas ações de aproximação entre pais e filhos e flagra momentos de grande emotividade e algum desconforto. Discreto no método e absorvente nos trabalhos de fotografia e trilha musical, Porque Temos Esperança deixa nas entrelinhas uma informação importante: a tal associação é na verdade o empenho de uma mulher só, movida por uma força advinda do próprio sofrimento. ♦ ♦ ♦
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THE NEW YORK REVIEW OF BOOKS: UMA REFLEXÃO DE 50 ANOS
Bem mais que uma revista de resenhas, The New York Review of Books tem sido por 50 anos um farol de inteligência literária, sociológica e política na cultura dos EUA. Pense em dez grandes intelectuais americanos e certamente nove deles, os mais radicais, já escreveram em suas páginas. Pense em dez grandes questões contemporâneas e é bem provável que todas elas tenham sido discutidas em alguma edição. O documentário idealizado por David Tedeschi e codirigido por ele e Martin Scorsese procura dar conta desse legado extraordinário.
O filme foi acusado de tratar acriticamente uma revista crítica. Chavão de crítico, com certeza. A 50 Year Argument não esconde sua intenção de celebrar a revista já no título. Boa parte do material foi colhido na festa do 50º aniversário, em 2013. Os elogios, mais precisamente, vão quase todos para Robert B. Silvers, cofundador e editor hoje solitário. Aparentemente uma unanimidade, Silvers é o tipo raro de editor que pede para você aumentar sua matéria, em vez de cortá-la.
Tedeschi é montador de filmes recentes de Scorsese. Aqui se trata basicamente de um belo trabalho de montagem, reunindo depoimentos e materiais de arquivo que demonstram a completa imersão – e às vezes protagonismo – da NYRB em debates e polêmicas de toda ordem. Os textos saltam das páginas seja através da leitura de trechos, seja pela sua repercussão em programas de TV. Lá estão, por exemplo, Susan Sontag, Norman Mailer e Gore Vidal discutindo feminismo diante das câmeras até bem próximo da agressão; ou cenas de impacto histórico ancorando as reminiscências dos jornalistas. O filme pode soar um tanto árido e convencional, mas não deixa de ter seu interesse como resenha de uma prodigiosa usina de ideias. ♦ ♦ ♦
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DE GRAVATA E UNHA VERMELHA
O que faz a identidade sexual de uma pessoa? A roupa? Os pelos do corpo? Os órgãos sexuais? O jeito de andar? O comportamento? Ou simplesmente o que cada um deseja ser? Esse tipo de pergunta, entre a psicanálise, a antropologia e a estética, costuma frequentar os filmes da psicanalista e documentarista Miriam Chnaiderman (Dizem que Sou Louco, Artesãos da Morte, Gilete Azul, Procura-se Janaína). Em De Gravata e Unha Vermelha ela reúne uma galeria de pessoas que vive na fronteira da transsexualidade ou mesmo já a cruzou. Incluem-se travestis, transsexuais, transgenders (incluindo transhomens, mulheres que se converteram em homens), praticantes de crossdressing e até um alegre grupo de rapazes do interior de Minas que se diverte vestindo-se de mulher. Nomes badalados como Laerte, Ney Matogrosso e Bayard Tonelli dividem espaço com outros menos conhecidos, mas não menos exemplares.
O estilista Dudu Bertholini colaborou na seleção e posa de entrevistador. Os depoimentos referem-se a memórias da infância, relações com os pais e a sociedade, a fase de assumir perante a família, os recursos utilizados (hormônios, cirurgias), as mudanças no cotidiano, os relacionamentos afetivos, etc. Há diversidade bastante para justificar a abordagem, mas por alguma razão o filme permanece na superfície das questões. Os cenários fashion e o clima um tanto festivo das conversas estimula a veia performática e narcísica da maioria dos entrevistados, talvez em detrimento de uma imersão mais profunda na realidade de cada um. Por isso se destaca o caso de Letícia Lanz (ex-Geraldo Eustáquio de Souza), que fala com legítima emoção do seu casamento com uma mulher que atravessou sua mudança de gênero ao longo de 37 anos.
Penso que Miriam optou conscientemente por um enfoque leve e meramente declaratório. Isso reduz o alcance da pesquisa em troca de uma efusividade visual e comportamental já bastante difundida. ♦ ♦
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JAMES BROWN
A crer numa das cenas do filme, houve um dia em que James Brown ironizou os Rolling Stones por dividirem o palco com ele sem nunca antes terem se apresentado nos EUA. Desde então, os Stones não só beberam nas águas do “Godfather of the Soul”, como Mick Jagger agora assina a produção de sua cinebiografia. Uma abordagem que não poupa tintas para pintar um astro arrogante, egocêntrico e rancoroso. Mas genial.
O melhor de James Brown, como já dizem os críticos americanos, é a performance de Chadwick Boseman (o Jackie Robinson de 42: A História de uma Lenda), pulsante e convincente tanto dentro quanto fora do palco. Afora isso, o que temos é uma fórmula de gênero um tanto batida, que o roteiro tenta inovar de maneira bastante arbitrária. A linha cronológica é cortada aqui e ali por flashbacks e flashforwards que não acrescentam muita coisa aos eventos em si nem à trajetória de Brown como um todo. Há lugar para os traumas familiares, os conflitos com colegas de banda e as aventuras amorosas, mas nada omite a impressão de que faltou material dramático para sustentar um filme de 139 minutos.
O diretor Tate Taylor busca o impacto com perseverança, apelando até mesmo para a interlocução direta com a plateia. Em vários momentos, Boseman/Brown fala para a câmera sem que nada justifique tal procedimento. Se era preciso energizar as cenas ao máximo para fazer justiça ao tufão James Brown, devemos reconhecer que os aditivos foram insuficientes. O trabalho de caracterização é o que justifica um certo interesse pelo filme. ♦ ♦
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O MISTÉRIO DA FELICIDADE
O início promissor faz crer que Daniel Burman tenha voltado aos seus melhores dias (leia-se O Abraço Partido, Ninho Vazio, Dois Irmãos). A amizade de vida inteira entre Eugenio e Santiago é representada por uma divertida sincronia de movimentos e atitudes enquanto eles trabalham na loja de eletrodomésticos que possuem em sociedade. Essa afinação perfeita e feliz vai por terra no dia em que Eugenio some do mapa sem deixar pegadas ou explicações. Santiago herda a mulher do amigo, que insiste em tomar o lugar dele.
A partir daí, o filme troca a visualidade eloquente do início pela verborragia e os lugares comuns de comédias popularescas ao som de salsas, rumbas e paródias de Aquarela do Brasil. Santiago e Laura começam a descobrir segredinhos desconhecidos de cada um sobre a vida de Eugenio. Como notas de rodapé em livro de bolso, tenta-se aqui e ali filosofar um pouco sobre afeto e felicidade com a ajuda de um típico personagem de comédias românticas argentinas, o alívio cômico, no caso um detetive armênio especializado em paradeiros.
A investigação do novo casal acaba por trazê-los ao Brasil, no rastro de um episódio do passado dos dois amigos. É quando essa coprodução naufraga de vez num desfecho dos mais cafonas que vi ultimamente. Claudia Ohana, destacada nos créditos iniciais, (des)aparece de costas numa única tomada desajeitada. Vulgar, previsível e aborrecido, O Mistério da Felicidade não honra a sempre grata presença do cinema argentino no Festival do Rio. ♦
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CASTANHA
A noite gay de Porto Alegre tem paródias de cantoras, “policiais” que tiram a farda em strip tease masculino, sátiras à homofobia evangélica… E tem João Carlos Castanha, ator transformista que canta e faz comédia stand up. Depois de escalá-lo num curta de 2008, o diretor Davi Pretto partiu para retratá-lo num longa que misturasse os registros de ficção e documentário. Castanha tem sido exibido em vários festivais internacionais e rendeu a seu protagonista o prêmio de melhor ator em Las Palmas, nas Ilhas Canárias.
O filme se enquadra numa linhagem que vem de John Cassavetes e, no Brasil, passa pelos recentes O Céu sobre os Ombros, Girimunho e Esse Amor que nos Consome. Ou seja, o limite entre a realidade do ator e a encenação é inteiramente borrado, com a primeira servindo à segunda. Castanha vive de fato com a mãe septuagenária num subúrbio da capital gaúcha, de onde sai para as boates e os teatrinhos em que trabalha. Leva uma vida financeiramente apertada, tem saúde frágil e sofre constante ameaça de violência de um sobrinho viciado em crack. Daí em diante, o que vemos é uma dramatização do cotidiano, na qual não cabe a pergunta se é verdade ou ficção.
Davi Pretto dosa com habilidade nosso acesso às informações, assim como a sutil introdução dos aspectos ficcionais dentro da estrutura documental. O noticiário criminal e das manifestações de 2013 entra pela TV e acentua uma certa alienação do personagem em seu pequeno mundo de carências e humor tristonho. Nas intenções do diretor, a confusão entre realidade e invenção se passaria na mente de Castanha, prisma que não me pareceu bem delineado no roteiro. A visão subjetiva do personagem se dissolve na enunciação principal do filme e o suposto delírio aparece como construção deliberada. De resto, a fotografia ora realista, ora espectral de Glauco Firpo (lembrando muito o estilo de Ivo Lopes Araújo) e a boa disposição de Castanha para expor sua condição contribuem para uma experiência marcante. ♦ ♦ ♦
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DESERTO AZUL
Fazer filme de ficção científica no Brasil é um desafio a que poucos se arriscam. Eder Santos, um dos artistas visuais mais sofisticados e celebrados do país, encontrou uma solução engenhosa para seu projeto Deserto Azul. Decidiu fazer uma aventura mais interior que exterior, e que se passasse basicamente “dentro” de obras de diversos artistas contemporâneos.
Assim, o personagem central, um rapaz em busca da transcendência espiritual, atravessa cenários futuristas que na verdade são originais ou reproduções de obras de artistas nacionais e internacionais, além de instalações do próprio Eder e de outros. Grande parte das filmagens foram feitas durante uma exposição-estúdio no CCBB de Brasília. A capital federal, com sua vocação de cenário futurista e meca esotérica, aparece ainda em cenas externas, alternando-se com o Deserto de Atacama, apropriadamente tingido de azul pelo guru vivido por Chico Diaz.
Deserto Azul é um trabalho que se vale da trama e do gênero ficção científica para tecer um tapete de referências artísticas e literárias. A procura da transcendência através do bloqueio do pensamento e dos sentidos funciona na verdade como um pretexto para o desfile de citações que vão de Machado de Assis a Yoko Ono, dos gregos a Godard. A combinação de parábolas espirituais com tantos gadgets e artefatos eletrônicos sugere uma espécie de Jodorovsky high tech, um tanto perdido em meio à sua própria investigação e simbologia. Com esse projeto, Eder Santos se coloca a meio caminho entre o diletantismo referencial e a construção de um novo padrão audiovisual para o cinema brasileiro. Os requintes visuais e sonoros do filme, finalizado na Alemanha, têm um nível que não tenho visto fora do campo da publicidade.
Atração à parte nas sessões de Deserto Azul é o convite a que os espectadores, em vez de desligar seus celulares, os conectem na rede do filme e acompanhem o conteúdo que vai sendo carregado ao longo da projeção. Não é nada que expanda de fato a experiência, mas apenas desenhos simbólicos, alguns storyboards e principalmente informações sobre locações, cenários, obras, citações e detalhes da produção. No caso de um filme-exposição como esse, não se pode negar que as “etiquetas” ajudam a enriquecer o percurso. Mas espero, sinceramente, que a moda não pegue e as janelinhas luminosas continuem apagadas nas sessões de cinema. ♦ ♦
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MR. TURNER
O cinema de Mike Leigh é repleto de pessoas feias habitando ambientes pobres e enfrentando com altruísmo a falta de beleza da vida. A história do pintor J.M.W. Turner lhe forneceu uma variante desse universo situada em meados do século XIX. Turner, como caracterizado esplendidamente pelo ator Timothy Spall, era um ogro deselegante, sexualmente patético, que se expressava mais por grunhidos que por palavras e não deixava muito lugar para a figura humana em suas paisagens marinhas repletas de luz e fúria.
Leigh realizou um filme ambicioso do ponto de vista das imagens e da encenação. Os tons da natureza de Turner são frequentemente evocados nos cenários virtuais e na composição das cenas. A ênfase está na cenografia de época e na dinâmica dos costumes, expressos em conversações longas que me pareceram bastante dispersivas. Mais que passar uma visão didática da obra do artista e do seu estilo, Mr. Turner parece interessado em desenhar o contexto em que ele viveu, entre ricaços esnobes, mulheres carentes e pintores mal sucedidos que alimentavam a expectativa de atrair os olhos da Rainha Vitória para seus quadros. O impacto da chegada da era industrial e da fotografia sobre a consciência do pintor é apenas esboçado em traços rápidos.
Se é sempre prodigioso no artesanato da mise-en-scène, Leigh não consegue evitar aqui uma certa frieza que chega à fronteira do desinteressante. Talvez tenha sido essa a forma encontrada de plasmar a opacidade fundamental de Turner, sua misantropia e deslocamento em relação a quase tudo o que fosse social. A maior parte da crítica internacional louva o filme bem além do que me parece merecido. Não sei se essa visão oblíqua do trabalho do pintor muda muito a impressão de quem vê seus maremotos e tempestades pendurados na Tate Gallery. ♦ ♦
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112 CASAMENTOS
Há cerca de 20 anos, o documentarista Doug Block filma casamentos para complementar seu orçamento. Não são filmagens convencionais restritas à cerimônia, mas pequenos documentários que ele faz com os noivos e suas famílias, envolvendo a preparação e as expectativas de cada um sobre o futuro. Nada mais natural que ele um dia retomasse esses materiais em busca de um doc de verdade. 112 Casamentos é isso. Block retorna a oito casais enquanto faz o registro uma nova união.
O projeto, interessante como ponto de partida, se revela, porém, limitado por várias razões. Os casais abordados são relativamente similares, pertencentes à classe média e com ambições burguesas. Se as cenas do casamento representam uma exceção na rotina de qualquer casal, a entrevista que dão anos depois são igualmente momentos especiais, ou seja, não fornecem acesso a uma real experiência. Há os que se separaram, os que varrem as dificuldades do relacionamento para baixo do tapete e os que parecem sinceramente felizes até hoje. Há doenças, depressão e desencanto no caminho de alguns. Há a vida, enfim. Nada, porém, que configure uma visão original da instituição ou da ideia de felicidade que ela pretende promover.
As reflexões que Block retira desses reencontros tampouco arranham a superfície do que diz o senso comum sobre o casamento: apenas 50% costumam dar certo. Será mesmo que precisávamos de um longa-metragem para chegar a essa conclusão? ♦
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E AGORA? LEMBRA-ME
Vários documentários já foram realizados a partir da doença terminal de seus personagens, constituindo uma espécie de subgênero, a auto-observação no limite entre a vida e a morte. Coube ao português Joaquim Pinto fazer um dos exemplares mais penetrantes e abrangentes. Em E Agora? Lembra-me, ajudado por seu companheiro Nuno Leonel, ele relata um ano de experiências com drogas ainda não legalizadas contra a Aids, a hepatite C e a cirrose.
Partindo da frase do amigo João César Monteiro, “cada doença tem um tempo e uma história”, Joaquim procura não apenas documentar suas dores, a confusão de ideias e os efeitos dos remédios, mas também transcendê-las através de um fluxo de pensamento poético sobre os vírus pessoais e sociais que corroem o corpo seu e do mundo. Assim é que a crise econômica na Europa, os conflitos no Oriente Médio e as pesquisas científicas convivem em digressões amplas, penosas, mas que nunca deixam de ser igualmente líricas.
Joaquim Pinto, que continua vivo e produzindo, é um emérito técnico de som, produtor e diretor de documentários do cinema português. Nesse filme-balanço de uma vida, ele relembra as relações de amizade e colaboração com Henri Alekan, Serge Daney, Raul Ruiz, João César Monteiro e Robert Kramer, entre outros. Passa em revista sua própria história desde a Revolução dos Cravos até o diagnóstico de Aids em 1996 e os diversos tratamentos malfadados entre Espanha, Portugal e Açores. Cenas de arquivo surgem como fragmentos de memória, conduzidos por um belíssimo texto narrado em primeira pessoa.
O filme é longo e poderia ser reduzido a bem da concisão. Mesmo assim, não há como ficar indiferente ao delicado experimentalismo de Joaquim, baseado principalmente na captação da natureza circundante e no uso dos tempos distendidos. É impossível não se deixar tocar pela profunda e calorosa reflexão que ele nos oferece sobre a fragilidade da vida e a vocação do amor e da arte para fortificá-la. ♦ ♦ ♦ ♦
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LIFE ITSELF: A VIDA DE ROGER EBERT
Roger Ebert (1942-2013) foi o crítico de cinema mais popular das últimas décadas nos EUA. De sua tribuna em Chicago, durante 46 anos, resenhou filmes com simplicidade, envolvimento humano e carisma; foi o primeiro crítico de cinema a ganhar um Prêmio Pulitzer e comandou, junto com Gene Siskel, um famoso programa de comentários de filmes na TV. Gostava tanto da autoexposição que não se furtou a se deixar filmar por Steve James (Hoop Dreams) em seus últimos meses de vida, depois que um câncer de tireoide havia requerido a extração do seu queixo e os lábios pendiam ao redor de um buraco. A boca sempre aberta o deixava com um aparente e exagerado sorriso. Ele já não podia falar, nem comer ou beber, mas escreveu e postou no seu blog até dois dias antes de morrer.
As imagens do hospital voltam como um refrão ao longo do filme, que conta sua história em chave de quase permanente elogio. Ebert foi jornalista precoce, alcoólatra redimido e muito criticado por conviver tranquilamente com cineastas e estrelas. Há quem diga que, mais que a maioria dos críticos, ele fez parte da indústria do cinema. Esse é um dilema que aflige nosso ofício: ser ou não ser parte da indústria, uma vez que a crítica é parte do processo não apenas de pensamento, mas também de consumo cinematográfico. Roger Ebert superou isso com garbo. Werner Herzog, Errol Morris, Martin Scorsese (produtor executivo) e o próprio Steve James reconhecem explicitamente o quanto devem às resenhas favoráveis que dele receberam. Não são muitos os críticos que já ganharam um filme só para eles, mesmo de curta metragem.
Usando extensivamente trechos das memórias homônimas de Ebert, Life Itself apresenta seu personagem como um fenômeno literário e de comunicação. Entre as virtudes do doc estão a cobertura de diversos aspectos da carreira de Ebert e da profissão em geral, assim com a discrição do diretor em não enfatizar sua relação de amizade com o personagem. Como ressalvas cito o tempo excessivo destinado às querelas infantiloides entre Ebert e Siskel e um certo apelo emocional ligado à doença. Pergunto-me, ainda, se, apesar de suas qualidades, o filme poderá cruzar o limite de um interesse específico e merecer o polegar para cima de um público mais amplo. ♦ ♦ ♦
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JORNADA AO OESTE
Este é o mais recente curta de uma série que Tsai Ming-liang vem fazendo desde 2012 com seu ator-fetiche Lee Kang-sheng na performance de um monge tailandês que caminha super, hiperlentamente em cidades movimentadas. Desta vez o cenário é Marselha (França), o que teoricamente ampliaria o estranhamento daquela figura exótica e semi-imóvel no meio da rua. Mas os marselheses parecem em sua maioria tão absortos no cotidiano, ou tão acostumados com figuras excêntricas de várias partes do mundo, que poucos dão alguma atenção ao performer.
O aspecto documental é importante. A câmera fica num tripé sem equipe ao redor (é possível ver isso no reflexo de um ônibus que passa). As reações dos transeuntes dão o colorido às cenas e, para nós espectadores, fornecem um contraponto de movimento normal ao slow motion do monge. Pelo que sei, em cada um desses curtas ocorre alguma coisa de especial perto do final. Em Jornada ao Oeste (ao Ocidente seria mais apropriado), é o ator Denis Lavant – o Lee Kang-sheng de Leos Carax – que vai se juntar ao monge em sua morosíssima peregrinação.
Entendidos da cultura oriental verão mensagens de biscoito sobre concentração zen e condicionamento do destino. Para mim, ocidental da gema, o filme bateu como um capricho de performance art e um estudo das diversas velocidades possíveis quando se confrontam dois mundos tão díspares. ♦ ♦
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DIFRET
Com produção executiva de Angelina Jolie e direção de Zeresenay Mehari, etíope radicado nos EUA, Difret é uma rara janela aberta para o cinema da Etiópia. O roteiro se baseia em experiências de uma associação de proteção às mulheres de Adis Abeba. Sua líder, Meaza Ashenafi (Meron Getnet), é a franca heroína do filme. Ela enfrenta os poderes policiais e judiciários para defender uma menina de 14 anos que foi sequestrada e estuprada por seu pretendente numa aldeia e, numa tentativa de fuga, o matou em legítima defesa.
O rapto de meninas para casamento é uma prática comum no interior do país. Mais que isso, é uma tradição defendida pelo direito tribal e tolerada pela Justiça oficial. Se a menina Hirut (a sensível Tizita Hagere) matou seu estuprador, então deve ser morta também e enterrada junto dele. Ou no mínimo exilada bem longe da aldeia. Para protegê-la, Meaza precisa encontrar uma testemunha que se disponha a depor em sua defesa. Ela não hesitará em botar seu trabalho em risco movendo um processo contra o Ministério da Justiça.
Difret segue o figurino dos dramas sociais africanos, com um pé na dramaturgia americana e outro no jeito local de narrar. A câmera, quase sempre na mão, procura conferir aspecto documental, investindo no enfoque direto e simples. Não faltam trancos de roteiro e soluções ingênuas aqui e ali, principalmente no que diz respeito ao processo jurídico. Apesar dessas insuficiências, Mehari consegue comunicar sua adesão à causa. O obscurantismo da vida rural, que vitimiza Hirut, contrasta com os costumes avançados de Meaza. O último plano define o destino da menina nas ruas modernas da capital. ♦ ♦
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VULVA 3.0
Que ninguém espere gracinhas sobre a anatomia feminina em Vulva 3.0. Elas ocupam poucos minutos num filme de cara fechada, alemão até o útero. Embora entreviste uma variedade de profissionais – ginecologista, pesquisadores, fotógrafa, colecionadora, censor, educadora sexual, ativista anti-mutilação e até um editor de imagens para revistas eróticas -, o enfoque é mais científico e sociológico do que qualquer outra coisa. A intenção principal é confrontar o tabu da exibição frontal de vaginas, objeto de desconhecimento e motivo de rejeição para muitas mulheres. A vulva é bela, afirma-se reiteradamente.
Há mesmo uma certa militância em prol de um melhor conhecimento das “raízes” e feixes nervosos que compõem o clitóris. Ou da aceitação natural das formas labiais que muitas mulheres procuram embelezar através de cirurgias plásticas. As correções estéticas, demonstradas à exaustão, levam o filme para o campo do doc científico, o que o torna bastante árido em muitos momentos.
Mas o que boloqueia o prazer de assisti-lo é mesmo a aparência de programa de TV ou de trabalho universitário em vídeo. As informações se sucedem quase aleatoriamente, sem uma estrutura que transforme tudo aquilo em coisa de cinema. Para um bom documentário não basta reunir dados. Com licença da palavra, o buraco é mais embaixo. ♦
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MR. LEOS CARAX
“Enfant du cinéma”, “filho de Méliès e Abel Gance”, “poeta maldito”, “estrela cadente que nunca se apaga”, “impostor assumido”, “uma brisa”… Eis alguns dos termos usados por críticos, atores e técnicos para tentar definir o misterioso Leos Carax nesse documentário. Com apenas cinco longas e sete curtas realizados em 30 anos, o diretor de Mauvais Sang e Holy Motors é objeto de culto do cinema francês. Depois de fazer um making of de Holy Motors, Tessa Louise-Salomé assumiu aqui a doce tarefa de sobrevoar a obra completa de Carax.
E ela o faz com o firme propósito de não furar a bolha de enigmas que cerca o cineasta. O documentário é inteiramente fantasmático e onírico, assim como tantos personagens nebulosos de Carax. As imagens de seus filmes – inclusive dos curtas pouco conhecidos – e de bastidores de filmagens invadem a tela pelas bordas, mais como sombras que como citações diretas. Embora grandes nomes da crítica e colaboradores como Juliette Binoche e Denis Lavant falem dele um bocado, o que se impõe é uma certa opacidade, como se todos aludissem a um ser extraterreno (ou a um diretor que já não vivesse entre nós). O próprio Carax não dá as caras, a não ser em breves cenas de arquivo, fazendo-se presente mais em áudios de sua fala sempre cool e tendendo à poesia.
Denis Lavant, seu ator alterego, tem oportunidade de discorrer mais longamente sobre sua relação com Carax, sublinhando o hibridismo entre ator e diretor na construção dos personagens. De resto, além da delícia de rever tomadas fascinantes de filmes nem sempre fascinantes (como Os Amantes de Pont Neuf e Pola X), a busca estilística de Tessa agrada mais do que o resultado enfim obtido. ♦ ♦
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CRIADO NA INTERNET: A HISTÓRIA DE AARON SWARTZ
Este perfil do programador e ativista Aaron Swartz, que se suicidou aos 26 anos durante uma batalha judicial contra o governo americano, me fez pensar em três fenômenos da contemporaneidade:
- Os gênios da computação, sobretudo aqueles que se dedicam à defesa das liberdades na internet, são vistos – e até se veem – como novos messias, empenhados na missão de “fazer do mundo um lugar melhor”. Há algo além do ativismo em suas posturas. Há um quê de visionarismo, personalismo e disposição para o sacrífício. O frágil Swartz, em sua curta trajetória, tem componentes crísticos: a precocidade que o levou a discutir com os mestres adultos já aos 12 anos, a capacidade de multiplicar o acesso à informação (os novos pães), a detenção, a morte ainda na mocidade.
- Eles são também os revolucionários de uma parte do mundo que já deixou para trás as revoluções. Swartz evoluiu da recusa à escola formal para a rejeição do business e a contestação do governo pela via do hackeamento e difusão gratuita de dados usualmente vendidos na rede. Virou alguém tão perigoso quanto Edward Snowden ou Julian Assange. A diferença foi um histórico de depressão que o levou a sucumbir à ameaça de perda da liberdade. O filme de Brian Knappenberger se conclui com a costumeira elegia do herói.
- Temos um recente subgênero do documentário: o thriller informacional, que combina verbalização veloz e muitos textos na tela, deixando pouco tempo para o espectador assimilar ou refletir sobre o que ouve e vê. Isso replica de certa forma o ritmo do pensamento de seus personagens. Swartz criou uma pré-Wikipedia com cinco anos de antecedência, ajudou a sistematizar os RSS e o Creative Commons, criou uma plataforma para desenvolver políticas progressistas, combateu vitoriosamente uma lei destinada a cercear a circulação de filmes e músicas na internet e se indispôs contra o sistema de espionagem do governo Obama. Para fazer tudo isso em tão pouco tempo de vida, só mesmo vivendo em modo high-speed. O filme apressa o passo para enfeixar tudo isso em 105 minutos. É tão instrutivo quanto extenuante. ♦ ♦ ♦
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POESIA PRECISA – A ARQUITETURA DE LINA BO BARDI
Por mais que se tente, é impossível separar a vida privada de um artista de uma compreensão mais profunda de sua obra. Este documentário de estreia da austríaca Belinda Rukschcio arrisca-se nessa separação e paga preço alto. Não é o caso de se exigir abordagem biográfica, mas sem um mínimo de informações sobre a imigração de Lina para o Brasil, seu background comunista e seu casamento com Pietro Maria Bardi, fica difícil compreender sua inserção na arquitetura moderna brasileira e mundial.
Para agravar a insuficiência, os depoimentos de discípulos e clientes, em sua maioria, são incapazes de dimensionar com propriedade o legado da arquiteta para além de generalidades sociológicas e curiosidades culinárias. O resultado é uma ilustração um tanto pobre e literal de obras célebres como o MASP e o SESC Pompeia, em São Paulo, e a Casa do Benim, a Casa do Olodum e o Solar do Unhão, em Salvador, em que a câmera da própria Belinda se esforça para captar os traços duros, amplos e econômicos de Lina. Mesmo considerando a vocação de programa de TV em média metragem, Poesia Precisa está longe de fazer justiça a seu objeto. ♦
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O SAL DA TERRA
O tema seria mais afeito a Werner Herzog que a Wim Wenders. Pode-se dizer que, em suas aventuras pelos cantos mais distantes do mundo, Sebastião Salgado viajou também no tempo, testemunhando do Gênese ao Apocalipse. É difícil imaginar como um par de olhos pôde contemplar diretamente tanta dor e miséria, algo que é duro até para nós, que vemos tudo mediado pela fotografia. O urso visto de perto, os campos de petróleo incendiados do Kuwait, o fim do mundo em close-up, todo esse acervo tipicamente herzoguiano recebe um tratamento contemplativo no filme codirigido por Wenders e pelo filho do fotógrafo, Juliano Ribeiro Salgado.
Wenders, na verdade, atuou explicitamente como o “olhar externo”. Um olhar, digamos, mais ligado à cultura que à natureza. Sebastião é posto em cena para comentar suas fotos, enquanto as imagens de ação propriamente dita vêm de filmagens de Juliano em fases diversas. Wenders é o fã de longa data que empresta sua curiosidade e admiração pela obra de Salgado, além do nome para engrandecer o projeto.
O Sal da Terra fica ainda melhor se visto em conjunto com Revelando Sebastião Salgado, de Betse de Paula. Esta o flagrou em situações íntimas, em seu apartamento de Paris, e abordou também o trabalho fotojornalístico de Salgado. Wenders e Juliano privilegiaram o aspecto épico de megaprojetos na África, Oriente Médio, América Latina, Amazônia e Nordeste brasileiro. Betse destacou mais o método do fotógrafo, ao passo que Wenders e Juliano enfatizaram a interpetação posterior. Em comum, os dois filmes trazem as belas reflexões de Salgado sobre o mundo – o que faz dele, mais que um coletor, um pensador de imagens. E também a exuberância do Instituto Terra, exemplo de regeneração ambiental que já entrou para a História.
Ambos são, no fundo, filmes de família. Em O Sal da Terra, três gerações dialogam sutilmente na forma como habitam o planeta e o revelam para nossos olhos extasiados.
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SOBRE SUSAN SONTAG
Susan Sontag era linda, fotogênica, elegante, inteligente e afirmativa. Qualidades que inspiraram o estilo da diretora Nancy Kates nesse perfil biográfico de imensas virtudes. O documentário é de uma rara sofisticação narrativa, visual e sonora, embalado pelo jazz e por fragmentos de textos de Susan lidos pela atriz Patricia Clarkson.
É um alívio ver um filme sobre alguém admirável sem que essa admiração esteja expressa nas referências elogiosas de praxe. Fala-se o tempo todo de ideias, fatos e sentimentos, mas sem espaço para o laudatório. Trechos de entevistas de Susan combinam-se com um uso imaginativo de materiais de arquivo e depoimentos de amigos, conhecedores e sobretudo amantes. Muitas amantes.
Nancy Kates, diretora identificada com personagens e questões gays, baseou seu roteiro nas diversas parceiras que Susan teve ao longo da vida, em meio a algumas poucas relações heterossexuais. Assim é que mulheres igualmente poderosas como a coreógrafa Lucinda Childs, a fotógrafa Annie Leibovitz e a atriz Nichole Stéphane (Baronesa Nichole de Rotschild) são também personagens de destaque no filme. Isso permite um aprofundamento do retrato pessoal de Susan, que se entrelaça com sua intensa atividade intelectual e política. Um filme indiscutivelmente apaixonado por sua personagem, mas que exprime isso pela linguagem, nunca pela língua. ♦ ♦ ♦ ♦
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MAPA PARA AS ESTRELAS
Não importa quem escreva seus roteiros, David Cronenberg sempre os transforma em filmes de David Cronenberg. Vale dizer que seus personagens nunca são pessoas, mas personificações de síndromes doentias que caminham inexoravelmente para algum tipo de explosão. Mapa para as Estrelas não é diferente, só que o manicômio dessa vez é Hollywood, o que já é bastante para justificar toda curiosidade.
No centro de tudo estão duas famílias ligadas ao mundo do estrelato. A trama criada por Bruce Wagner (roteirista associado ao terror de Wes Craven) é um buquê de rivalidades, neuroses, traumas e incestos que conduzem à esquizofrenia e ao assassinato. Uma trama de horror, enfim, disfarçada de sátira ao modo de vida hollywoodiano, estrelando vulgaridade, escatologia, esbanjamento e arrogância. O que soa divertido no início vira assustador a partir de certo ponto para depois ficar na memória apenas como uma brincadeira meio pesada.
Longe de qualquer viés moralista, mas tampouco sem a autossatisfação que se via, por exemplo, em O Lobo de Wall Street, o filme apenas examina com uma lupa os desregramentos dos personagens. A atriz magnificamente vivida por Juliane Moore, em particular, encarna o coquetel venenoso que embriaga aquele tipo de celebridade em rota de colisão.
Cronenberg não tem a menor preocupação em ser sutil. Tudo é carregado de intenções, dos diálogos aos cenários e às referências à realidade de Tinseltown. Nem é o caso de se esperar uma história coerente e muito clara. O que conta é espalhar a gasolina, riscar o fósforo e deixar que as chamas façam o serviço. Quem quer ver a casa pegar fogo não se ocupa em arrumá-la primeiro. ♦ ♦
Pingback: Melhores de 2014 | ...rastros de carmattos
Carlinhos,você não viu o “Galápagos”? Foi o único que vi, achei incrível: uma história desconhecida, imagens impactantes, bem narrado. Esta é também para dar um abraço e boas-vindas, já que acompanhei seu diário de viagem pela Croácia.
Não vi, Adolfo, mas vou correr atrás do prejuízo. Abração
Acompanhando os comentários e traçando meu roteiro.
Azar o seu, hahaha