Retomando as pílulas

Através desses curtos, despretensiosos e muito pessoais comentários nas redes sociais é que tenho conversado ultimamente sobre os filmes que vejo. Reúno-os aqui para os amigos que não frequentam Facebook ou Twitter e também para ter uma memória mais acessível. Fiquem à vontade para comentar. 

LUCY, de Luc Besson, confirma que Scarlett Johansson se transformou numa espécie de gadget cinematográfico, uma imagem de mulher apta a ser manipulada para além dos limites do realismo. Como, aliás, já tínhamos visto em “Sob a Pele”. Lucy é uma reencarnação da Nikita de Besson em chave de filme B, com efeitos digitais de baixa categoria e muita inserção de bancos de imagens. De vez que assume abertamente esse formato, o filme pelo menos não quer se passar por algo superior ao que é. O discurso científico sobre evolucionismo e exploração extraordinária das faculdades cerebrais convive em harmonia com a ação descabelada e o humor autoderrisório. Avançando na percepção do tempo e na supressão do espaço, Lucy vai além de quase tudo o que já se imaginou para super-heróis. Puro gibi, pura diversão sem medo do ridículo. Thriller vagabundo, claro, mas honesto em sua calhordice fundamental.

Embora cercado pela sombra do melodrama, achei que O ÚLTIMO CONCERTO, de Yaron Zilberman, se mantém sóbrio e afinado, acabando por se tornar bastante absorvente. É um estudo sobre o que a música exige de seus intérpretes para que estes alcancem um nível de excelência no trabalho em grupo. Para manter sua harmonia e qualidade, o famoso quarteto de cordas do título tem que saber lidar com a perda, a degenerescência física, o instinto de competição e os impulsos amorosos. Parte importante do bom resultado se deve ao casting perfeito, com Christopher Walken e Philip Seymour-Hoffman liderando a partitura. Ao contrário de outros filmes sobre música clássica, esse não dissolve o assunto em pieguices sobre a nobreza da arte. Um dos quartetos tardios de Beethoven, peça central do roteiro e referência do título original “A Late Quartet”, é mais que um enfeite espetaculoso ou fetiche erudito. É estrutural ao longo do filme, o que faz toda a diferença.

A carreira ultimamente irregular de Domingos Oliveira ganha um ponto acima da curva com INFÂNCIA (visto no Festival do Rio), que creio ser o seu primeiro filme de época. Embora irregular também internamente, o filme tem tantos momentos de perspicácia e humor que se torna irresistível. O viés autobiográfico é ambíguo e centra-se no menino Rodrigo, cercado por uma família da burguesia industrial nos anos 1950. No papel da imperial matriarca Dona Mocinha, Fernanda Montenegro fatura cada frase e cada inflexão num retrato de doce arrogância e autoritarismo congênito. Não há mesmo atriz como ela, capaz de transformar a fala mais corriqueira numa cintilação de surpresa e autenticidade. Domingos demonstra aqui um acento renoiriano (“A Regra do Jogo”) na exposição da moral da época. As relações conjugais, familiares, econômicas e de classe são desvendadas através de diálogos e situações imprevisíveis, dirigidas com propriedade, ainda que nem sempre os atores infantis deem conta do recado com a naturalidade e a fluência desejáveis. Mas a execução técnica é a melhor de seus últimos filmes. No pano de fundo, a guerra entre Samuel Wainer (Última Hora) e Carlos Lacerda anuncia a iminência do fim da Era Vargas e da abertura de um novo capítulo na história do país e de nossas famílias. Assim como Domingos viria a representar um filão da cultura brasileira na segunda metade do século passado, este filme põe em cena a infância da nossa modernidade.

NAN GOLDIN: I REMEMBER YOUR FACE (visto na repescagem do Festival do Rio) me fez compreender bem melhor a estranha espiritualidade que eu detectava nas suas fotos. O doc de Sabine Lidl acompanha Nan em visita a diversos(as) ex-amantes, amigos e modelos, e desvenda bastante o modo de vida apaixonado e desregrado da grande fotógrafa – aliás, algo que em vez de esconder ela sempre revelou em seu trabalho. Mas o melhor de tudo foi saber que Nan é uma grande colecionadora de arte sacra e perceber como isso se reflete em sua obra. Afinal, todas aquelas fotos de casais drogados, gays e lésbicas em posição desarmada, drags desmontadas, aidéticos lânguidos e variada fauna noturna têm uma espécie de aura religiosa ao contrário. São figurações do êxtase, da dor e de uma certa beatitude. Algumas são francamente inspiradas em quadros famosos, mas todas exibem esse erotismo transcendental que é comum ao sacro e ao profano. Veja fotos de Nan Goldin aqui.

 

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