O Instituto Moreira Salles está realizando, desde quarta-feira, a mostra Sensory Ethnography Lab de Harvard e o Novo Cinema Antropológico. Com curadoria de Richard Peña, estão sendo exibidos seis filmes produzidos pelo laboratório, além do brasileiro Serras da Desordem, de Andrea Tonacci, incluído por sua relação com a estética dos trabalhos do SEL (veja a programação aqui).
Dos seis filmes, eu conheço quatro. Todos são peças de observação de rotinas em ambientes os mais diversos. Nenhum apresenta qualquer interação entre personagens e equipes de filmagem, nem com o espectador. Nenhum tampouco envolve um arrazoado histórico como Serras da Desordem. A seguir, comento um pouco sobre cada um deles.
A começar pelo festejado documentário Leviathan, de Lucien Castaing-Taylor e Verena Paravel. Eles são antropólogos e cineastas. Nesse filme, tentam dissolver as fronteiras entre o doc etnográfico e o filme experimental. Observam com suas câmeras o dia-a-dia (melhor dizendo, noite-a-noite) de um barco pesqueiro na costa de Massachussets. O filme é filho distante do clássico Drifters (1929), de John Grierson, mas com uma abordagem hiperrealista em que a pesca industrial, em vez de objeto poético, aparece como fato quase monstruoso. Com frequência, as imagens se descolam do mero registro para se aproximarem da abstração.
O som é igualmente poderoso, gerando uma experiência imersiva que não tem muitos paralelos no cinema contemporâneo. Não há diálogos nem narração, mas tão-somente a fúria do mar, a agonia dos peixes e o trabalho árduo dos homens. Os diretores, também responsáveis pela fotografia e a montagem, colocam câmeras em locais inimagináveis e oferecem uma experiência única, radical, em que se minimizam as diferenças entre céu, mar e máquinas; aves, peixes e homens. Um filme duro, brilhante e espantoso.
O mesmo Lucien Castaing-Taylor assina Erva-doce (Sweetgrass, 2009), que por sua vez tem uma possível raiz no também clássico Grass (1925), de Merian C. Cooper and Ernest B. Schoedsack, que acompanhava a dura travessia de uma tribo nômade iraniana para levar seus rebanhos aos locais de pastagem. Nesse novo doc, são rancheiros de Montana, nos EUA, que conduzem milhares de ovelhas pelas montanhas em busca das pastagens de verão. O filme começa no ambiente do rancho, observando partos, amamentação, tosquias, etc. Depois passa a registrar o deslocamento do rebanho, sonorizado pelos balidos permanentes e pela ruminação dos rancheiros, seja “conversando” com os animais, seja xingando-os quando escapam ao seu controle na jornada.
A câmera de Castaing-Taylor alterna planos muito próximos da ação – às vezes dentro do próprio rebanho – e outros tomados a variáveis distâncias, o que destaca a paisagem grandiosa das Montanhas Rochosas. As tomadas diurnas enfocam a viagem, enquanto as noturnas dão conta da permanente ameaça de lobos e ursos. Faria bem um corte mais rigoroso no material, filmado entre 2001 e 2003, este o último ano em que a condução dos rebanhos através de terras públicas foi possível. Um tanto repetitivo e deprovido de drama, Erva-Doce se afirma, porém, como uma pastoral. Do ponto de vista etnográfico, ressalta os métodos rudimentares que ainda prevalecem nessa atividade, mesmo num país moderno como os EUA.
Falemos agora de Manakamana (2013), uma experiência razoavelmente radical de filme etnográfico. Os diretores Pacho Velez e Stephanie Spray filmaram uma série de travessias de um teleférico no Nepal. Eles se postaram na pequena cabine do teleférico e registraram, em tempo real e sem cortes, o comportamento dos passageiros que subiam a montanha em direção ao lendário templo da deusa hindu Manakamana ou faziam o percurso de volta. O filme é composto por 11 viagens, cada uma durando cerca de 10 minutos, o tempo de um rolo de filme 16mm.
Nada além disso: passageiros em primeiro plano e a paisagem ao fundo. A primeira subida leva um senhor e um menino, que não trocam palavra. Viagem após viagem, os peregrinos vão ficando mais falantes. Há um casal levando um galo para sacrificar no templo, três metaleiros fazendo selfies, mãe filha se lambuzando com um picolé, dois tocadores de sarangi (instrumento tradicional nepalês) ensaiando uma apresentação, duas turistas anglófonas e até um vagão transportando um punhado de cabras assustadas. A presença dos diretores não é jamais considerada explicitamente. Mas é claro que, à possível exceção das cabras, ela interfere no estado dos peregrinos, naturalmente intimidados pela situação. O objetivo dos realizadores, porém, não é flagrar nenhuma verdade sobre aquelas pessoas, mas simplesmente observá-las numa situação de trânsito.
Durante a travessia, as vidas estão em suspenso. Ninguém se revela, nem diz nada de excepcional. As conversas são ralas e esparsas, quando ocorrem. De resto, o filme mostra como os passageiros silenciam e esperam. Um tempo morto para a vida, mas não para a observação da câmera. Muitos deles são pessoas habituadas a caminhar muito e falar pouco. Agora estão ali, sentadas a meio caminho entre o corriqueiro e o sagrado. O filme faz o que eu chamaria de etnografia do intervalo: o que acontece quando nada acontece?
Talvez a proposta se esgote um pouco no próprio dispositivo, mas a expectativa de cada novo par ou trio de passageiros e a singeleza dos comportamentos compensam cada minuto que passamos pendurados com eles entre as montanhas.
Por fim, uma nota rápida sobre Parque do Povo (People’s Park, 2012), de Libbie D. Cohn e JP Sniadecki, que flagra a rotina de um parque de Chengdu, na província chinesa de Sichuan. A novidade aqui é a filmagem em um único plano de 78 minutos, sem cortes. O cinegrafista é empurrado numa cadeira de rodas em meio a casais que dançam, crianças que brincam, pessoas que cantam ou falam ao celular, gente que come ou pratica caligrafia no chão… Enfim, as múltiplas atividades que constituem o coração popular das cidades chinesas contemporâneas. O eixo mais baixo da câmera acaba por enquadrar especialmente crianças, pessoas sentadas e partes de corpos sem identidade. O efeito é curioso, mas um tanto estéril. Eis um filme que poderia ser rodado por qualquer turista caprichoso, mas que turistas se dariam a um trabalho como esse?