Um filme pode ser tantas coisas. Pode ser uma obra de arte, um testemunho e mesmo um empreendimento de energia poética em torno de um desejo. Esse amor que nos consome é tudo isso, junto e ao mesmo tempo.
Muito além de apresentar a Companhia Rubens Barbot Teatro de Dança, o filme de Allan Ribeiro se oferece como mais uma forma de apropriação de uma casa no Centro do Rio pelos diretores do grupo, Rubens Barbot e Gatto Larsen. Eu poderia mesmo afirmar que o filme incorpora uma função quase mística na conquista daquele espaço.
A cena de abertura é um jogo de búzios em que a vidente (em off) garante que a casa será deles, conforme o mando de Iansã, o orixá de Barbot. A cena final é bastante conclusiva: a fachada da casa coberta por uma colcha imensa de retalhos – que tapava a placa de “vende-se” – e uma figuração de Exu fumando na janela. Nesse jogo de arte divinatória e performance religiosa, a obra cinematográfica clama para si um papel de oferta votiva, uma paráfrase do “trabalho” de candomblé, cujo ciclo se abre com a consulta e se fecha com o atendimento.
O aspecto um tanto mágico se estendeu à estreia do filme na Semana dos Realizadores de 2012, quando estava presente o proprietário do imóvel. Dois dias depois da emocionada sessão, ele anunciou que retiraria a casa de venda e a deixaria com o grupo, que lá permanecia instalado pelo menos até setembro de 2013.
Eflúvios, quem sabe, de um filme costurado praticamente a seis mãos pelo diretor e seus personagens centrais. Percebe-se ali uma tal identidade de propósitos, uma parceria tão íntegra que faz as cenas brotarem, com burilada simplicidade, da vivência do casal. A casa é seu “terreiro”, como Larsen chama, num primor de duplo sentido. Não à toa, antes de ter seu título definitivo, o filme se chamava Territórios.
A dança, por mais aérea que seja, necessita de um chão onde o pé se apoie firmemente para cada salto ou rodopio. Da mesma forma, a arte precisa de uma moradia, um endereço fixo de onde possa sair pela cidade e retornar quando a noite encerra sua faina. Esse amor que nos consome acompanha a ocupação da casa em diversas fases: a entrada de utensílios, a identificação de utilidades, a arrumação e a limpeza, o teste do chão e dos espaços pelos bailarinos, as primeiras visitas de amigos. Ao mesmo tempo, vemos Rubens e Gatto impregnarem o lugar com a energia de sua presença. O banho de caneca, a cama repartida, os hábitos comuns. O filme está ali com eles, colaborando nessa impregnação.
O interesse pelo cotidiano instrui a câmera, sem nenhuma intenção aparente de criar pautas informativas ou sínteses narrativas que se prestem a definir quem está diante dela ou o que fazem. Não há nada de especial a ser afirmado, além do essencial que emerge das conversas simples à mesa das refeições, da informal troca de ideias a propósito dos próximos espetáculos, tudo à base de observação e cenas combinadas em regime de sutileza e familiaridade. Exatamente como acontecia no curta Ensaio de cinema, que primeiro reuniu o mesmo trio.
O habitual rege também algumas cenas de rua, sobretudo as conversas de Rubens com outros frequentadores das redondezas – o que ecoa outro curta do diretor, A dama do Peixoto. A cidade é o campo de expansão dessa mistura de arte sofisticada e vida simples. É lugar de passagem e de paisagem, onde o corpo se assume como centro do universo. Daí que vez por outra a cena se descole do naturalismo e embarque num fragmento de dança ou num esboço de performance. A vida cotidiana é o chão, o terreiro de onde emana a arte e que também a inspira.
Ser um grupo de dança com poucos recursos, sem patrocínio certo, impõe como tarefa diária a superação da necessidade e o empenho no ato de criar a partir do pouco que se tem à mão. Compreendemos essa rotina por referências esparsas como a falta de dinheiro para comprar camarão ou o pedido de licença do bailarino para ganhar um dinheirinho em outro emprego. Afora, é claro, a questão da casa à venda, o que os fazia sentir-se frequentemente ameaçados com a visita de possíveis interessados. Era quando Exu entrava em vigília para afastar o perigo.
O tema da carência financeira, porém, não leva a mais um episódio de lamentação em torno do artista pobre. A leveza com que isso é abordado, e com que as pessoas dentro do filme reagem à necessidade, informa não apenas sobre o caráter dos personagens, mas também sobre as intenções desse particularíssimo documentário. Trata-se de um trabalho (aqui não mais entre aspas) de afirmação de resistência mediante o pensamento mágico, o vínculo coletivo e o respeito à diversidade.
Tal como aparece na tela, a Companhia Rubens Barbot é um laboratório de construções híbridas, onde se fundem o masculino e o feminino, o maduro e o jovem, o clássico e o popular, o urbano contemporâneo e as tradições africanas. Um exemplo dessas “pontes” aparece durante o processo de criação de uma versão de Otelo, quando Gatto Larsen intui a semelhança entre o personagem de Shakespeare e Ogum, a divindade guerreira do candomblé. Esse tipo de aproximação/apropriação se dá em vários níveis. Uma porta demolida pode virar cenário de ensaios, um resto de material pode se converter num vistoso adereço de cabeça. Há uma constante operação de alquimia entre vida e ação criativa, moradia e produção de arte, intimidade respeitosa e exposição afetuosa.
Com calma e parcimônia, numa teia de momentos que evidencia um rigor muito grande na seleção e montagem (Ricardo Pretti) do material filmado, Allan Ribeiro combina o flagrante e a encenação do real. Articula os espaços da casa e os espaços do Centro da cidade num belo diálogo que flui através das janelas, portas e caminhadas. O comentário poético de Gatto, com amplas citações do Poema sujo de Ferreira Gullar, cria uma suave alternância com os diálogos, que também se mantêm no limite do usual, sem jamais evidenciar intenções de retórica.
A iluminação de Pedro Faerstein dá uma contribuição fundamental a essa atmosfera de intimismo, reforçando e aquecendo os vetores da luz natural e diegética nos interiores. Quando sai à rua, o filme potencializa as luzes da cidade e procura tirar daí o sentimento predominante nas cenas de coreografia em exteriores. É um trabalho requintado sem ser lustrosamente ostensivo como de hábito no planeta HD.
Por mais que se trate de arte e habitação, não há como minimizar o teor político desse gesto de apropriação que o filme registra e adensa. A cidade é aqui um organismo vivo em fase de ocupação. A região central do Rio de Janeiro tem sido palco de uma variada disputa entre iniciativas governamentais e da sociedade civil pela ressignificação de áreas decadentes ou ociosas. O sobrado em que o grupo se aloja, assim como seu entorno, surgem como exemplos do apoderamento não oficial. O que fazem Barbot e sua turma é transformar casa e rua em equipamentos produtores de afetividade, canteiros de obras sensíveis em diálogo constante com a geografia da cidade.
E o que faz o filme? Não é um documentário sobre a companhia nem “sob” ela (como gosta de dizer Joel Pizzini a respeito de alguns de seus trabalhos). Esse amor que nos consome coloca o aparato cinematográfico em sintonia fina com o funcionamento do grupo. Há coisas ali que só existem como tal no filme, e basta citar o pas de deux à beira da baía e a dança dos garotos de programa na madrugada. Em momentos como esses, a rigidez do plano ou a dinâmica da montagem ditam uma maneira especial de ver uma coreografia que existiria diferente longe das câmeras. Isso pode soar um tanto óbvio, mas na verdade exemplifica a delicada transformação que o filme opera o tempo inteiro. Em lugar de voyeurismo ou busca de síntese, temos uma visão dos artistas que se quer assim mesmo fragmentada, discretamente colocada em cena, a meio caminho entre o naturalismo e a performance.
E o que mais pode um filme? Pode acumpliciar-se de tal modo ao seu objeto que é capaz de surtir efeitos sobre ele. Do jogo dos búzios à cobertura da placa de venda no final, desenrola-se um filme-invocação, um despacho artístico cujo personagem principal talvez seja não Rubens nem Gatto, mas Exu.
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