O tempo passa e nem sempre temos tempo de fazer o que queremos. Há muito espero uma pausa para escrever uma nota a respeito de um dos melhores livros sobre documentários que li ultimamente. Chama-se O ABRIGO DO TEMPO – Abordagens cinematográficas da passagem do tempo (Alameda, 2012), e seu autor é o documentarista e professor da ECA-USP Henri Gervaiseau.
Henri é um estudioso sério, profundo e apaixonado do cinema documental. Dono de vasta cultura acadêmica, ele articula como poucos a contribuição alheia a suas reflexões próprias sobre os realizadores e filmes que toma como objeto de análise. Esse livro de densas 450 páginas se debruça sobre pontos luminosos da história do documentário, dos Lumière a Eduardo Coutinho e Jean-Luc Godard.
O método de Gervaiseau se distingue por não aferrar-se a uma leitura fechada do fenômeno cinematográfico, mas antes abri-lo para o diálogo com outras manifestações da arte. Para chegar aos irmãos Lumière, por exemplo, ele parte da pintura impressionista e dos primeiros exercícios de fotografia documental que antecederam (anunciaram) o cinema. O filme de atualidades nascia, então, da fome de imediatismo que exigia uma redução do tempo entre o acontecimento e sua representação visual.
Os primeiros filmes de viagem e etnográficos merecem um capítulo, que vai desembocar em Flaherty e num exame detalhado do superclássico Nanook, o Esquimó. Daí a constatação da existência de uma “mise-en-scène documental, fruto de uma longa e paciente observação da situação presente na comunidade estudada e de um conhecimento aprofundado de sua memória coletiva”.
Dziga Vertov ocupa pouco mais de 50 páginas, num estudo minucioso de suas práticas de filmagem e montagem, concentrado principalmente nos filmes A Sexta Parte do Mundo e O Homem com a Câmera. Como reflexão brasileira publicada sobre Vertov, creio que a de Gervaiseau só rivaliza com a de Silvio Da-Rin em Espelho Partido. Mas é aqui que eu tenho a única discordância com o autor, ou talvez com o próprio Vertov: ele não surpreende suas personagens para capturar “instantes quaisquer de seus cotidianos”, mas sim instantes decisivos, definidores, que permitem plasmar imagens-síntese de situações e estados.
Outra pesquisa acurada alimenta a parte dedicada a Leni Riefenstahl e seu O Triunfo da Vontade. Nesse caso, o destaque vai para o que Henri chama de “vontade de conformação do real à imagem projetada, a priori, do acontecimento” (o congresso do partido nazista em Nuremberg). O exame decompõe o filme inteiro para apontar as estratégias de mitificação do Führer e de identificação das massas com sua figura.
O mesmo tipo de análise cena a cena é empregado em relação a Cabra Marcado para Morrer, caracterizando a narrativa sofisticada do filme de Coutinho como construção de uma “comunidade de memória”. Se até então os filmes abordados no livro eram retratos do presente em que eram filmados (no que pese a encenação de práticas de pesca fora de uso em Nanook), no Cabra institui-se a relação entre o tempo passado e o presente.
O volume se conclui com uma espécie de livro-dentro-do-livro (127 páginas) sobre a série Histoire(s) du Cinéma. O olhar contemporâneo de Godard para o passado do cinema recebe de Henri uma mirada igualmente meticulosa. Ele disseca a série, estabelece relações entre episódios vários e assinala “a ambiguidade da relação objeto-sujeito e passado-presente”. O cinema como lugar de memória e guardião da passagem do tempo ressalta com vigor nessa e nas outras partes desse livro fundamental.