Rê Bordosa – anatomia de um crime

Texto sobre DOSSIÊ RÊ BORDOSA escrito especialmente para o livro “Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais”, lançado durante o Anima Mundi

Em hora imprecisa do dia 21 de dezembro de 1987, a personagem de quadrinhos Rê Bordosa foi torturada, seviciada e friamente assassinada, tendo seu corpo jogado nas águas sujas do rio Tietê. Vinte anos depois, um curta-metragem se propõe investigar as circunstâncias do hediondo crime.

Dossiê Rê Bordosa faz uso de algumas operações intermidiáticas para alcançar seu objetivo. Vamos examiná-las uma por uma. Embora passa parecer, isto não é um making of escrito do filme de Cesar Cabral. Seria antes um watching of, ou seja, uma forma de ver por dentro a construção do curta do ponto de vista do espectador-crítico.

  1. Operação Crime

Rê Bordosa era uma personagem de ficção, cujo assassinato só seria passível de investigação dentro do ambiente ficcional. Daí que o filme se diga “baseado em fatos reais da obra fictícia de Angeli”. É necessário, então, criar um arcabouço criminal que lhe sirva. Nesse ponto, a narração inspirada em O Bandido da Luz Vermelha lhe cai como uma luva de criminoso. O tom radiofônico e popularesco ecoa o ambiente de submundo em que trafegam tanto Rê, quanto, no passado, Angeli.

O culpado já se sabe de antemão: é o próprio criador. Ele nunca se furtou à identificação. Resta questionar o porquê. Como um artista mata sua galinha dos ovos de ouro? Por que tantos requintes de crueldade na execução do crime? Haveria explicação psicanalítica para um fato dessa natureza? Esta é a pauta do filme.

  1. Operação Animadoc

A forma escolhida é o documentário investigativo. Reúnem-se depoimentos de testemunhas, especialistas, parentes e amigos dos personagens. Juntam-se materiais de arquivo, filmes domésticos, capas de jornais, evidências. Somando dez horas de gravação, Cesar Cabral de fato entrevistou Angeli, sua ex-mulher e sua ex-assistente, bem como o editor da revista Chiclete com Banana, o colega Laerte (ainda vestido como homem) e o psicanalista Tales Ab’Saber. Todos falam com propriedade naturalista sobre o comportamento e o que se passava na cabeça do cartunista, a meio caminho entre a verdade e a invenção. Vida bandida, arte genial.

Amigos de Rê também são entrevistados: o nojento Bob Cuspe e o bronco Bibelô, outras criaturas de Angeli. Gente patife, figuras impagáveis. As tirinhas em table top fazem as vezes de material de arquivo, evocando o passado  de Rê.  O crime é relacionado com outros fatos objeto de teorias conspiratórias internacionais.

Dossiê Rê Bordosa entra de esguelha no gênero do documentário animado, ou animadoc. Enquanto a regra dominante é usar a animação para expressar coisas do mundo real que não se pode mostrar em live action ou que se prefere estilizar pela animação, aqui o objetivo é criar um falso documentário, ou mockumentary, animado. O documental fornece apenas a estrutura e o princípio narrativo, criando já a partir da sua inadequação um efeito de comicidade.

  1. Operação Angelizar

A investigação da morte de Rê Bordosa será levada à tela no idioma do assassino. Será preciso converter tudo ao estilo do desenho de Angeli, inclusive os personagens que não foram criados por ele. Daí que os entrevistados reais levam de seu somente a voz, tendo seus traços reproduzidos caricaturalmente, como que saídos da pena do cartunista. Mimetismo e imaginação se combinam para chegar à sugestiva concepção final do curta.

Do traço à imagem tridimensional, a terceira operação se desdobra e se sofistica. Os personagens gravados ao vivo são em seguida desenhados e materializados em bonecos feitos de látex, arame e silicone. Assim, pessoas reais e criações dos quadrinhos passam a coexistir no mesmo patamar de bonecos, equivalendo-se. Isso corresponde a uma completa indistinção entre a realidade (Angeli, seus companheiros, sua produção artística, as interpretações psicanalíticas) e a ficção (Rê, seus amigos, o assassinato, o mundo em miniatura dos bonecos).

  1. Operação Leituras

As perguntas colocadas pelo filme levantam questões psicanalíticas e até religiosas. As duas biografias seguem em paralelo, divergindo e convergindo ao sabor das “revelações” até o ponto de concluirmos todos, junto com Angeli, que ele e Rê são de fato uma mesma pessoa. A banheira em que ambos aparecem afundados, taça de bebida ao lado, sublinha esse amálgama. Angeli, em dado momento, admite não gostar do tipo de mulher representado por Rê. Diante dessa afirmação, o desejo de matá-la pode ser visto como um impulso de matar em si aquilo que não lhe agrada, isto é, o passado de boemia, álcool, drogas, sexo e rock’n’roll.

A ideia de um criador que mata sua criatura aproxima o cartunista da imagem cristã de um Deus que nos fez e nos destrói com a mesma impunidade. “Frio” e “sem querer” são duas expressões opostas que Angeli utiliza para descrever como matou Rê Bordosa. Vinte anos depois, o crime estava prescrito e ele nada tinha a temer. A rigor, nunca teve, uma vez que matar seu personagem é inimputável para o artista. Assim como Deus faz conosco, seus personagens de ficção que acreditamos, por um curto lapso de tempo, sermos reais.

Agora veja o filme na íntegra:

 

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