LAZZARO FELICE – Netflix
Lançado diretamente na Netflix, LAZZARO FELICE é uma dessas gemas raras que o cinema de vez em quando nos oferece. Um filme cuja superfície fabular recobre uma carnadura social cruel.
O Lazzaro do título é um jovem camponês explorado pelos seus iguais numa fazenda de tabaco do interior da Itália. Em sua beatitude, ele simplesmente aceita qualquer ordem, de qualquer natureza. Lazzaro é a ponta mais fraca de uma cadeia de explorações movida pela proprietária da fazenda (uma “marquesa”) e seu capataz através do trabalho escravo, do isolamento e da manutenção de dívidas eternas.
Uma grande novidade na vida de Lazzaro será a aproximação com o filho da “marquesa”, rapaz revoltado contra o papel da mãe, mas embriagado pelo excesso de imaginação. Por causa dessa amizade, o humilde camponês acaba sofrendo um infortúnio fatal.
Mas eis que, como o Lázaro da Bíblia, ele “ressuscita” cerca de 20 anos depois como um fantasma de carne e osso, mantendo a mesma aparência. Tudo mudou, menos ele. Mudou inclusive o filme, que trocou a rusticidade da primeira parte – onde se viam semelhanças com o Pasolini campesino e os Taviani – por uma levada mais fantasiosa e ao mesmo tempo brutal. Para não dar spoiler, basta dizer que a realidade da cidade se apresenta tão ou mais áspera que a do campo. E que Lazzaro seguirá em sua cruzada de bondade e lealdade, entre a má fé alheia e as suas próprias reservas de magia.
Os protagonistas bondosos e inocentes são uma constante nos filmes de Alice Rohrwacher (Corpo Celeste, As Maravilhas). LAZZARO FELICE deu-lhe o prêmio de roteiro no Festival de Cannes e diversas láureas em outros festivais. Tem aquele misto de crueza e ternura, pathos e humor que o grande cinema italiano sabe manejar como nenhum outro.
Alice filmou em Super 16mm, obtendo uma textura granulada e propositadamente anacrônica. Os personagens do campo ficaram com atores não profissionais, em oposição aos da cidade, vividos por nomes como Alba Rohrwacher (irmã da diretora), Sergi López, Nicoleta Braschi e Natalino Balasso. O papel de Lazzaro foi confiado ao estudante Adriano Tardiolo, virgem em cinema. Na interpretação “branca” de Tardiolo, a cineasta projetou um contraponto de inocência e mistério à dureza de uma Itália impiedosa.
Quem também adora esse filme é Walter Salles. Numa troca de impressões comigo, ele escreveu o seguinte e me autorizou a publicar:
“O personagem central me lembrou o Candide de Voltaire, perdido em um mundo cada vez mais desumanizado. É também um dos melhores filmes recentes sobre a questão da precarização do trabalho. Como é reveladora a cena em que os policiais descobrem os camponeses trabalhando em regime de semi-escravidão e os “libertam” para virarem parte do lumpesinato urbano…. Há algo de surrealista nessa coisificação do homem – e talvez por isso o não envelhecimento do personagem central não nos choca. É uma forma poética de resistência, que continua ecoando após a cena brutal que encerra o filme.
(Lembra do momento em que os prédios em ruínas alçam vôo em ‘Depois da Vida’, do Jia Zhangke? Nas entrevistas para o documentário que fizemos, Jia disse que a destruição daqueles povoados milenares lhe pareceu tão inacreditável, que adicionar um elemento teoricamente surrealista lhe veio, ao contrário, como um gesto lógico. Da mesma forma, o não envelhecimento de Lazzaro não parece absurdo frente à realidade com que o personagem se defronta).”
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Excelente comentario..me fez ampliar meu entendimento sobre o filme
Que bom, Ceci.
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Erro: faltou cruel e ao mesmo tempo lírico*
Foi surpresa cruel e ao mesmo tempo, Netflix está aos poucos explorando os filmes mais cult! Adorei !