O BEIJO NO ASFALTO
Ator de grande contenção e sutileza, Murilo Benício surpreende pela ousadia ao dirigir pela primeira vez. Arrisco-me a dizer que o seu O BEIJO NO ASFALTO é a melhor das três versões cinematográficas (todas boas) já feitas da peça de Nelson Rodrigues
Em 1964, Flavio Tambellini (o pai) enfatizou a culpa e as ressonâncias religiosas da peça com estilo um tanto expressionista em O Beijo (leiam meu comentário sobre esse filme). Em 1980, Bruno Barreto privilegiou os aspectos psicológicos e a linguagem realista com o seu O Beijo no Asfalto.
Em ambas as versões, o aspecto teatral foi dissimulado em benefício de uma transposição puramente cinematográfica. Murilo Benício tomou o caminho inverso e acentuou a origem teatral. Seu filme se passa num interstício entre a leitura comentada da peça pelos atores em torno de uma mesa, sob a direção de Amir Haddad, e a filmagem da encenação em décors de teatro.
Esse exercício de mediação exposta poderia resultar apenas pitoresco, não fosse tão magistralmente realizado e não servisse para melhor revelar a essência do texto de Nelson Rodrigues. Nessa peça de 1960, Nelson lidava com o que hoje chamamos de homofobia, fake news e sadismo social. O fato de um homem beijar outro homem que estava à beira da morte num acidente de rua detonava uma cadeia de oportunismo, preconceitos, hipocrisia, chantagem, machismo e intolerância. O escândalo era amplificado pelo ambiente sufocante do subúrbio carioca nos anos 1950.
Ao dissecar as motivações do dramaturgo na mesa de leitura, Amir Haddad e Fernanda Montenegro guiam o espectador para uma fruição mais íntima e complexa da peça. Aqui vale a pena lembrar que Nelson escreveu O Beijo no Asfalto a pedido de Fernanda, que fez o papel de Selminha na montagem de estreia e agora interpreta a fofoqueira Dona Matilde.
Por outro lado, a frequente demolição da quarta parede cinematográfica, revelando cenários e equipe de filmagem, instaura uma dimensão do falso que é perfeitamente condizente com a manipulação armada contra o compassivo Arandir. Cada passagem entre a situação de teatro e sua dissimulação pelo enquadramento e o corte cinematográficos nos faz penetrar em distintas camadas da parábola de Nelson sobre o veneno da maledicência.
O magistral trabalho de câmera e luz de Walter Carvalho é determinante para essa fluidez de registros. O uso dos enquadramentos, com saídas e entradas dos personagens – seja pelo deslocamento para o extraquadro, seja no uso da profundidade de campo – reconfigura constantemente o espaço cênico e potencializa o significado das relações humanas. Dois exemplos: quando Selminha sai de quadro durante uma discussão, deixando Arandir sozinho diante da câmera, percebemos que ali se dá uma ruptura definitiva entre os dois. Já os poucos passos de Aprígio entre a casa da filha e a sala da delegacia, numa falsa adjacência puramente teatral, vai sugerir o sentimento de culpa que domina a mente desse homem conflituado.
Há muita inteligência no roteiro e na direção de Benício. A opção pelo preto e branco nos devolve à atmosfera noir dos anos 1950, na qual se passa a ação em primeiro plano. As cenas externas, por sua vez, estão em plena atualidade, o que mais uma vez retira o filme de uma perspectiva realista e o insere no âmbito da mera representação.
É preciso destacar o excepcional conjunto de performances do elenco: Lázaro Ramos como o generoso e honestíssimo Arandir; Débora Falabella no papel de Selminha, um poço de boa-fé contaminado pelo vírus da difamação; Stenio Garcia como o sogro moralista; Luiza Tiso na pele da apaixonada Dália; Augusto Madeira e Otávio Muller como os sórdidos delegado Cunha e jornalista Amado Ribeiro. Um momento em que Fernanda Montenegro se perde entre as páginas da leitura demonstra sua capacidade de transformar qualquer imprevisto numa cena deliciosa.
Quando estão encenando “de verdade”, esses atores e atrizes dizem os diálogos originais com um prazer evidente, por vezes em tomadas longas e desafiadoras. Eles preservam as pausas, os cortes bruscos, as hesitações e descontinuidades que fazem das falas de Nelson um espetáculo em si. As quebras e imperfeições das falas exprimem as fissuras mentais e morais dos personagens tanto quanto o próprio conteúdo das palavras. Preservar esse caráter de maneira tão brilhante é um dos grandes trunfos do filme.
Por fim, vale comentar a opção por escalar um ator de pele preta no papel de Arandir, acredito que pela primeira vez. Isso agrega uma consideração sobre o racismo latente dos vilões de O Beijo no Asfalto. Murilo Benício não faz nenhum acréscimo para explicitar isso, mas o subtema fica insinuado, ainda mais por se tratar de um contexto de quase 60 anos atrás. Nelson Rodrigues abordou o racismo somente na peça Anjo Negro, de 1946
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