Em 2013, quando eu editava a revista Filme Cultura, fizemos um número inteiramente dedicado à animação brasileira e me incumbi de escrever sobre os animadocs. Na ocasião, eu considerava:
“O documentário animado, que atende na intimidade por animadoc, é um dos tipos de narrativa mais em voga desde os anos 2000 e constitui hoje praticamente um subgênero dentro das duas modalidades clássicas de cinema que combina. Podemos, assim, encontrar exemplares tanto na programação do Anima Mundi quanto na do Festival de Documentários É Tudo Verdade, bem como nos festivais internacionais de curtas do Rio e de São Paulo. Eles estão na pauta dos acadêmicos e nas prateleiras do comércio virtual.”
O Anima Mundi 2019 vem ratificar esse quadro, trazendo pela primeira vez uma categoria competitiva de documentários de animação com seis curtas-metragens.
A percepção do espectador diante de um filme desses se divide entre o “crédito” que suscita a forma documentário e a “descrença” normalmente associada à animação. A relação de confiança do espectador com o documentário vem não somente de uma postura geral diante do filme, mas do aval de legitimidade de cada uma de suas imagens, tomadas como documentais. O desenho, o boneco ou a computação gráfica, criados sempre frame por frame ao invés de retirados do fluxo da vida, são uma forma de representação completamente desvinculada do mundo físico e social, significando portanto uma intervenção brutal sobre o teor de realidade do discurso documental. Daí a natureza muito particular dos animadocs.
Há uma tendência a que os documentários animados tratem de temas mais graves, mas não necessariamente de maneira sisuda. No franco-belga Saigon Sur Marne, por exemplo, a diretora Aude Ha Leplège usa de muito bom humor para contar a história do encontro de seus avós entre o Vietnã e a França em tempos de guerra, exílio e imigração. Os dois velhinhos interrompem o relato a todo momento com tarefas domésticas enquanto a neta se desdobra para seguir gravando. A animação, em computador 2D, oscila o tempo todo entre a realidade da casa e as evocações do passado, somando mais uma camada lúdica ao drama de fundo.
Caso de família é também Cuentos de Viejos – Capitulo V, de Carlos Smith e Marcelo Dematei. Uma entrevista com Gloria Gaitán foi submetida à rotoscopia e ilustrada por flashbacks animados a respeito do assassinato de seu pai, o líder socialista colombiano Jorge Eliecer Gaitán, quando ela tinha dez anos de idade. O relato de memória assume coloração avermelhada, em função das manifestações políticas que a menina frequentava levada pelo pai. Os flashbacks são uma evocação da inocência que a animação consegue realizar em contraste com o “realismo” da rotoscopia.
Dois curtas, narrados em primeira pessoa, lidam com dilemas ligados à sexualidade. O belga Récit de Soi, de Géraldine Charpentier, expõe as reflexões de uma menina que se percebia como menino e se violentava ao ter que seguir os padrões binários. Um grande conforto lhe veio ao assistir e se identificar com o filme Tomboy. Sintético e minimalista, é um elogio ao efeito social das representações do cinema. Já o brasileiro Sangro, de Tiago Minamisawa, Bruno H Castro e Guto Br, baseia-se na experiência real do narrador Caio Deroci, que redescobriu a vida depois que se viu infectado pelo HIV. Entre o reconhecimento do horror e a superação da culpa e do medo, a meditação do personagem assume uma textura emocional impactante. A torrente de técnicas mistas não fica atrás, mesclando imagens de Hieronymos Bosch a desenhos próprios e stop motion com efeito visual poderoso.
O francês Swatted é o mais intrigante dessa seleção. O swatting é um tipo de assédio que se faz chamando a polícia para a casa de alguém sob falsa alegação de crime ou suicídio. Alguns desses casos têm consequências drásticas para as vítimas. O curta de Ismaël Joffroy Chandoutis trata especificamente de swattings cometidos contra pessoas que estavam jogando videogames online nos EUA. Confesso que não saí do filme esclarecido sobre os estranhos procedimentos envolvidos. Mas fiquei impressionado com a animação em wireframe, uma técnica que “esvazia” a imagem de sua “massa”, deixando apenas as linhas, o “esqueleto” de paisagens, interiores e pessoas. O que só acrescenta à morbidez do assunto.
Por fim, o mais singelo de todos é The Outlander, história de um bebê elefante que, no século XVI, presenteado a dois diferentes reis, foi levado do Ceilão a Portugal e depois percorreu a pé o caminho entre Lisboa e Viena. Dos restos do pobre Süleyman seriam feitos uma cadeira de ossos e, com o couro, muitos pares de sapatos. O passo do elefantinho, desenhado sobre papel, tem direção da búlgara Ani Antonova.
Os animadocs estão dispersos em diferentes sessões do Anima Mundi, em cartaz no Rio até o domingo, 21/7. Em São Paulo, o festival acontece de 24 a 28 de julho. Confira a programação no site oficial.