Um monstro em estado bruto

O BAR LUVA DOURADA

A figura do serial killer no cinema costuma ser “explicada” por algum elemento psicológico ou associada a alguma perversão. Recentemente, vimos o protagonista de A Casa que Jack Construiu, de Lars Von Trier, tratar o assassinato e a decomposição como obras de arte. Fritz Honka, o personagem central de O BAR LUVA DOURADA, é o contrário de tudo isso. O Honka real foi vítima de abuso sexual na infância, mas Fatih Akin preferiu eliminar esse dado do filme para evitar qualquer interpretação ou intervenção sobre a pura bestialidade dos fatos. Deixou-nos o monstro em estado bruto.

Honka é parte de um pequeno mundo insólito, o dos frequentadores do boteco Zum Goldenen Handschuh, que existe desde 1956 até hoje. Nos anos 1970, quando se passa a ação, era um microcosmo de gente pobre, feia e infeliz numa Hamburgo infestada de marinheiros, imigrantes e desencanto com o capitalismo. Com sua aparência monstruosa, frustração sexual e uma misoginia violenta, tudo o que Honka conseguia era arrastar velhas prostitutas para seu tugúrio em troca de bebida barata, onde as estuprava, matava e esquartejava sem qualquer requinte.

Para quem não estiver preparado, algumas cenas podem chocar pelos detalhes gráficos, mas o que mais suscita o incômodo é mesmo a maneira sórdida como aquelas pessoas se relacionam, no limite mínimo da humanidade. O primeiro ato, em que uma pobre mulher se deixa escravizar por Honka, me lembrou a galeria abjeta posta em cena pelo austríaco Ulrich Seidl. Já o breve interlúdio de recuperação de Honka se avizinha da amabilidade patética de Aki Kaurismäki. Mas esse é um personagem condenado à barbárie e à derrota, um pequeno ogro tão truculento quanto vulnerável.

A atmosfera de quase permanente depressão é temperada por pitadas de humor negro e uma espécie de suspense frio, mais ligado à repulsa que ao horror.

O acúmulo de termos negativos nesse texto sugere uma experiência torturante ou niilista, o que de fato tem sido para alguns críticos e conhecidos meus. Mas não foi para mim. Entendi o filme como um mergulho competente num universo cruel e melancólico, como se Fassbinder tivesse um dia resolvido filmar uma história desse gênero. Apenas ressalto que Fassbinder provavelmente teria sido menos banal em algumas soluções do último ato.

Fatih Akin (Contra a Parede, Do Outro Lado, Em Pedaços), nascido em Hamburgo de pais turcos, mantém sua marca de um cinema duro e forte, extremamente preciso na encenação e nas caracterizações. Num elenco de rostos e corpos magistrais fora dos padrões, destaca-se o jovem e bonito ator Jonas Dassler, drasticamente deformado pela maquiagem (veja vídeo abaixo) e pela postura corporal.

Chama atenção, ainda, o papel dos dois estudantes que aparecem como contrapontos ao mundo grotesco dos demais personagens: a jovem angelical que Honka idealiza como supremo objeto de desejo e o rapaz que, a meu ver, encarna uma piada com a curiosidade mórbida do espectador.

2 comentários sobre “Um monstro em estado bruto

  1. O Luva Dourada é impressionante! Que filme! Que cenografia! Que escolha de elenco! Que figurinos! Estética do abjeto, do sórdido, do sub humano! Nas cenas das escadinhas para o sótão muquifo nefasto me lembrei daqueles filmes do expressionismo alemão (caligari, vampiro de dusseldorf, enfim, uma mistura!). Achei muito bom! De um caso verídico, de uma história de serial killer o cara faz um cinema completamente autoral. Bom, bj! Vamos ao próximo!

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