Horrores do Brasil

O ator e diretor José Mojica Marins (Zé do Caixão) faleceu ontem, 19 de fevereiro, aos 83 anos.

Publico aqui um artigo de Laura Loguercio Cánepa sobre o estado do filme de horror brasileiro em 2013 e o legado de Mojica nesse gênero. O texto saiu originalmente na revista Filme Cultura nº 61, de novembro de 2013. Leia o original aqui.

por Laura Loguercio Cánepa

RECORRENTE NO CINEMA POPULAR BRASILEIRO DESDE OS ANOS 1960, O HORROR VOLTA À CENA EM PRODUÇÕES DE GUERRILHA E COMO METÁFORA SOCIAL

Quem acompanha a multiplicação de curtas-metragens brasileiros de horror desde o começo dos anos 2000 e, mais recentemente, de novos longas independentes, pode imaginar que o país viva uma onda de filmes do gênero. Referência para essa onda foi o retorno às telas de José Mojica Marins, na produção luxuosa para padrões nacionais Encarnação do demônio (2008), que encerrou a trilogia iniciada com À meia-noite levarei sua alma (1964) e Esta noite encarnarei no teu cadáver (1967). Não por acaso, o filme contou com a participação de jovens talentos do horror no curta-metragem, como o roteirista Dennison Ramalho e o técnico em efeitos especiais Kapel Furman, ambos também diretores.

Quando lançado, Encarnação buscou vincular o cinema de Mojica às tendências internacionais – como o torture porn –, mas também fez justiça ao pioneirismo do cineasta na dramaturgia da violência explícita, marca de sua obra desde o princípio. E, mesmo tendo sido um fracasso comercial, recolocou o cinema de horror brasileiro na mídia, mantendo o nome de Mojica como nossa maior estrela no gênero.

A articulação que se viu desde então entre os cineastas e críticos especializados, e deles com seu público, por meio de filmes, mostras, publicações e festivais (como o Fantaspoa, o RioFan e o Cinefantasy), sugerem mesmo a constituição de um nicho de mercado que pode se mostrar relevante nos próximos anos, como atestam produções ambiciosas e ainda não lançadas, entre elas Quando eu era vivo, de Marco Dutra, baseado em A arte de produzir efeito sem causa, de Lourenço Mutarelli, e O outro lado do vento, de Walter Lima Jr, adaptação da clássica novela de Henry James A outra volta do parafuso.

Mas, num momento como esse, vale fazer um balanço das tradições com as quais essa comunidade se identifica, pois elas são decisivas quando se trata de discutir cinema de gênero. E o fato é que existe uma tradição de cinema de horror no Brasil. Pouco observada até cerca de uma década atrás, essa produção vem sendo objeto de atenção de pesquisadores dentro e fora da universidade, o que acabou por revelar um mapa complexo de expressões do gênero ao redor do país e ao longo do tempo. Assim, apesar da dificuldade de acesso a cópias e da eterna polêmica em torno de indexações, podemos identificar várias tendências que articularam as temáticas do sobrenatural e da monstruosidade, as imagens explícitas de violência e certas práticas de divulgação e recepção – que, em conjunto, caracterizam o fenômeno do horror como gênero em nível mundial.

O florescimento do horror cinematográfico brasileiro coincidiu com os primeiros ciclos do gênero em vários outros países, como Itália, França e México, a partir do final dos anos 1950. Por aqui, a tendência foi incorporada por Mojica, em 1964, quando À meia-noite levarei sua alma chegou às telas, conquistando sucesso popular e polêmica na crítica e na imprensa. Diga-se, por justiça, que Mojica não foi o único brasileiro a tentar emplacar filmes de horror no período. Na mesma época, estava em produção o filme mineiro de Luis Renato Brescia, Phobus – ministro do diabo, nunca distribuído comercialmente. A proeza de Mojica, porém, foi muito além de fazer seu filme quase artesanal chegar às salas de cinema. É que seu sucesso produziu também a primeira onda de horror na mídia audiovisual brasileira, chegando ao cinema, ao rádio e à TV em inúmeros produtos que tinham como estrela seu personagem original, o agente funerário sociopata Zé do Caixão.

E a obra de Mojica teve outro papel importante ao inspirar cineastas que aderiram a uma estética mais chocante e mesmo escandalosa. Eles incorporaram o horror ao ciclo do cinema erótico paulista dos anos 1970, em sintonia com uma corrente mundial do sexploitation voltada a filmes de horror divulgados com títulos sugestivos de temática sexual e de extrema violência. Entre as dezenas de obras, destacam-se aqui Signo de Escorpião – A ilha dos devassos (Carlos Coimbra, 1974), Amadas e violentadas (Jean Garrett, 1976), Ninfas diabólicas (John Doo, 1978), O estripador de mulheres (Juan Bajon, 1978), A força dos sentidos (Jean Garrett, 1979), A reencarnação do sexo (Luiz Castelini, 1981) e Liliam – A suja (Antonio Meliande, 1981), sendo que algumas figuram entre os maiores sucessos do cinema brasileiro do período. 

O impacto e a influência de Mojica nesse processo não devem obscurecer, porém, outras tendências mais antigas que também tiveram desdobramentos a partir dos anos 1960. A principal delas é a paródia, estratégia responsável pela eventual incorporação do repertório do horror ao cinema nacional desde os anos 1930, inicialmente por meio do deboche em comédias musicais como O jovem tataravô (Lulu de Barros, 1937) e Os três vagabundos (José Carlos Burle, 1952).

No começo dos anos 1970, influenciado tanto por essa tradição paródica quanto pela violência extrema de Mojica, o cinema marginal também mostraria interesse pelo horror, que foi absorvido em filmes como Prata Palomares (André Faria Jr., 1971), Barão Olavo – O Horrível (Julio Bressane, 1970) e Lobisomem – O terror da meia-noite (Elyseu Visconti, 1974), entre outros. No mesmo período, comédias populares também desmoralizavam o gênero, como A viúva virgem (Pedro Carlos Rovai, 1972), Quem tem medo de lobisomem? (Reginaldo Faria, 1974), Bacalhau (Adriano Stuart, 1976) e Jeca contra o capeta (Pio Zamuner/Amácio Mazzaropi, 1976) – numa estratégia retomada por Hugo Carvana em A casa da Mãe Joana 2 (2013).

No somatório dessas tradições é que se encontram as origens das principais obras cômicas de horror brasileiras, dirigidas por Ivan Cardoso nos anos 1980. O cineasta carioca, depois de estrear no ciclo do Super-8 com Nosferato no Brasil (1971), emplacaria os sucessos populares O segredo da múmia (1982) e As sete vampiras (1986), e ainda seria o primeiro a conquistar a simpatia geral da crítica, chegando também a exibir seus filmes em festivais internacionais de prestígio.

Mas houve correntes menos numerosas que se vincularam, de alguma forma, ao horror. Melodramas sombrios dos estúdios paulistas como Veneno (Gianni Pons, 1952), Meu destino é pecar (Manuel Peluffo, 1952), Leonora dos sete mares (Carlos Hugo Christensen, 1955) e Estranho encontro (Walter Hugo Khouri, 1958), por exemplo, lidaram com um repertório que seria retomado por Christensen e Khouri, 20 anos depois, em obras de horror femininas como O anjo da noite (1974) e Enigma para demônios (1975), relacionadas com sucessos como Os inocentes (Jack Clayton, 1961) e O bebê de Rosemary (Roman Polanski, 1968).

Ainda nos anos 1950, os filmes independentes Alameda da saudade, 113 (Carlos Ortiz, 1951) e Noivas do mal (George Dusek, 1952) trouxeram os temas da assombração e do assassinato em série, que seriam recorrentes mais adiante. A assombração apareceria, em diferentes tendências da Boca do Lixo, entre elas a de filmes espíritas como O médium – A verdade sobre a reencarnação (Paulo Figueiredo, 1980) e Joelma – 23º andar (Clery Cunha, 1980). Já o assassinato em série seria o mote de inúmeros filmes eróticos (como O matador sexual, 1978, de Tony Vieira, inspirado no assassino Chico Picadinho, ou o célebre episódio O pasteleiro, de David Cardoso, em Aqui, tarados!, 1981), e ainda apareceria na aventura O guru das sete cidades (Carlos Bini, 1972) e o no slasher Shock! (Jair Correia, 1984), entre outros.

Vale lembrar ainda mais uma corrente nascida nos anos 1950, que abarca uma dezena de coproduções estrangeiras realizadas no Brasil, entre as quais Curuçu – O terror do Amazonas (Curucu – Beast of the Amazon, Curt Siodmak, 1955), O mistério da ilha de Vênus (Macumba love, Douglas Fowley, 1959), O peixe assassino (Antonio Margheriti, 1979) e Demônios negros (Demoni 3, Umberto Lenzi, 1991), obras infames que inspiraram duas produções nacionais feitas para o mercado internacional de home video: Satanic attraction e Ritual of death, ambas dirigidas por Fauzi Mansur em 1989/90, com algum sucesso comercial em VHS. O recente Turistas (Turistas – Go home, John Stockwell, 2006), feito na onda do torture porn dos anos 2000, mostra que a tendência deixou descendentes.

No final dos anos 1980, no entanto, junto com todo o cinema nacional, o horror sofreu um baque, recuperando-se eventualmente durante a retomada, em filmes pouco lembrados como Olhos de Vampa (Walter Rogério, 1996-2002), O Xangô de Baker Street (Miguel Faria Jr., 2002) e Um lobisomem na Amazônia (Ivan Cardoso, 2005). Foi, porém, fora do circuito oficial que o gênero tomou outros rumos.  Na década de 1990, proliferaram produções de horror tidas como trash, termo usado para definir uma categoria ampla de produtos culturais. O adjetivo se refere a produções cuja pobreza depõe contra sua qualidade, tornando-as aberrantes. Mas também vem sendo aplicado a obras consideradas ruins que não sofrem de pobreza material (como certas produções televisivas), ou para outras, bem realizadas, mas que têm como principal interesse o caráter ofensivo e de violência explícita.

Nos labirintos do trash, surgiram figuras importantes. O catarinense Petter Baiestorff e sua trupe, que conta também com Cesar Coffin Souza (A paixão dos mortos, 2011) e Gurcius Gewdner (Mamilos em chamas, 2008), adotou um sistema de guerrilha, com filmes realizados e distribuídos em vídeo, vendidos por correspondência desde a década de 1990, como O monstro legume do espaço (1995) e Arrombada – Vou mijar na porra do seu túmulo (2007). Eles continuam na ativa, em sucessos do underground como O doce avanço da faca (2011) e Zombio 2 (2013). Mas, ainda que a fama tenha crescido em função da Internet, nota-se que seu modo de produção tem encontrado dificuldades para manter-se economicamente, em função da pirataria digital. Outro cineasta que seguiu essa trilha foi o gaúcho Felipe Guerra, que realiza violentas paródias de horror, obtendo surpreendente inserção em festivais do gênero. Seu longa mais conhecido, feito em VHS e também campeão de vendas por correspondência, foi Entrei em pânico ao saber o que vocês fizeram na sexta-feira 13 do verão passado (2002), que teve sua continuação em 2011.

Esse gosto pelo trash dialoga com as ideias do cinema marginal, mas ganhou vida própria, constituindo uma corrente que tem despertado interesse crescente. Nesse sentido, há que lembrar também do papel de Mojica – ele, mais uma vez – que, ao apresentar o programa Cine Trash, na Band, entre 1996 e 97, encarregou-se de popularizar o termo para uma geração que hoje realiza filmes de horror muito baratos, como os de Joel Caetano (Minha esposa é um zumbi, 2006) e Sandro Debiazzi (A coveira das almas, 2013).

A partir dos anos 2000, viu-se também o impacto progressivo dos curtas. Os violentíssimos Amor só de mãe (2003) e Ninjas (2009), de Dennison Ramalho, são os mais conhecidos. Mais nomes importantes da nova geração foram se destacando, como o cearense Shiko (Lavagem, 2011), os pernambucanos Juliano Dornelles e Daniel Bandeira (Mens sana in corpore sano, 2011), o gaúcho Fernando Mantelli (Sintomas, 2003) e os paulistas Fernando Rick (Coleção de humanos mortos, 2005), Carlos Gananian (Behemoth, 2002) e Juliana Rojas (O duplo, 2012). Com eles, teve início um movimento que atua muitas vezes de maneira independente do apoio oficial, com cineastas colaborando entre si, e que tem tido impacto nos festivais, possibilitando o intercâmbio com outros cineastas latino-americanos dedicados ao gênero. Entre os novos realizadores, os mais conhecidos são os que enfrentaram o desafio dos longas, como o capixaba Rodrigo Aragão (Mangue negro, 2009; Mar negro, 2013) e o dramaturgo e diretor paranaense Paulo Biscaia Filho (Morgue story, 2009; Nervo craniano zero, 2011), ambos ligados ao horror explícito de sangue e tripas. Há também os que correm por fora mesmo do circuito paralelo, como David Schürmann (Os desaparecidos, 2011) e Zeca Nunes Pires (A antropóloga, 2011).

A partir desse conjunto, parece inadequado concluir que o horror seja pouco praticado no Brasil. Mas é preciso reconhecer que o assunto raramente foi inserido no debate sobre o cinema nacional, mantendo-se, na maior parte do tempo, como um universo à parte. Isso até agora. Pois um fenômeno ainda mais recente pode estar recolocando algumas questões. Afinal, se por um lado, há espaço para certa militância no gênero, podem-se observar também referências ao horror em filmes de outros gêneros.

No documentário, por exemplo, temos Filmefobia (2008), de Kiko Goiffman, que recuperou os famigerados testes de atores de Mojica numa chave mais reflexiva. Também os filmes espíritas como Nosso lar (Wagner de Assis, 2010), ainda que escapem do horror, não conseguem evitar o diálogo com o sobrenatural, que é notório em suas hibridações com a ficção-científica, como Área Q (Gerson Sanginitto, 2011).

Mas, sobretudo, tem-se obras que remetem a experiências limítrofes com o horror, como as de David Lynch e Michael Haneke. Em longas como Meu nome é Dindi (Bruno Safadi, 2009), O fim da picada (Christian Saghaard, 2008), Os famosos e os duendes da morte (Esmir Filho, 2009), Os inquilinos (Sergio Bianchi, 2009), Trabalhar cansa (Juliana Rojas e Marco Dutra, 2011) e O som ao redor (Kleber Mendonça, 2012), o uso mais ou menos evidente de recursos de estilo do horror talvez tenha algo a contribuir para a compreensão de aspectos das tensões sociais e individuais de nosso país.

De alguma forma, a desigualdade social, a falta de perspectivas e a herança da escravidão, tratadas ao longo da história do cinema brasileiro em várias chaves (irônica, melodramática, revolucionária, policialesca etc) têm ganhado, nesses filmes, abordagens do ponto de vista de uma atmosfera de horror. Obviamente, não do horror-gênero, mas daquele entendido como representação do que sentimos diante de ameaças de explosões de violência. O fato é que, nesses filmes, o espectador se identifica com a percepção das personagens de que a qualquer momento algo terrível pode acontecer, embora nem sempre aconteça. E esse compartilhamento da tensão é uma das características mais importantes das histórias de horror. Mas “algo terrível” pode acontecer nesses filmes não por estar-se necessariamente sob o poder de forças sobrenaturais ou de psicopatas, e sim em função de mazelas atávicas da sociedade brasileira. É nesse ponto que talvez esteja nascendo uma visão diferente não apenas dessas mazelas brasileiras, mas, quem sabe, do próprio horror. Trata-se de abordagens novas de questões sociais urgentes e de um gênero que talvez tenha encontrado espaço inesperado para reemergir. No entanto, serão necessários alguns anos para sabermos se a tendência se manterá ou ficará congelada no tempo.

  • Laura Loguercio Cánepa é jornalista e docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi. Doutorou-se na Unicamp, em 2008, com a tese Medo de quê – Uma história do horror nos filmes brasileiros.

Foto: José Patrício/Estadão Conteúdo

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