Viagem da burguesia à barbárie

SAGRADA FAMÍLIA na III Semana Cavídeo Online

Rever Sagrada Família 36 anos depois da primeira vez foi como uma injeção lisérgica. Eu tinha uma lembrança vaga do estranhamento profundo que o filme me causou, mas não me recordava por quê. A radicalidade de Sylvio Lanna naquele projeto/projétil de 1970 requer uma espécie de bula para, se não entendê-lo, pelo menos atinar para alguns de seus objetivos.

O que primeiro ressalta é a completa dissociação entre imagens e sons. Não somente em relação ao sentido, que não se acopla, mas também e principalmente em relação ao tratamento dado a cada campo. São universos totalmente separados que se tocam muito eventualmente, como na cena da refeição, na primeira parte do filme, quando uma voz (supostamente do patriarca) apresenta a composição da família. O filho é também seu genro, casado com sua filha de outro casamento. Uma disfunção – o meio incesto – pode ser interpretado, numa chave moralista, como fator de danação do grupo familiar.

Imagem rigorosa, som anárquico

Depois de aparecerem em casa e numa festa chique, os quatro personagens burgueses, somados ao motorista manco, preparam as malas e saem em viagem. Inicia-se, então, um road movie sem rumo definido. As imagens, do fotógrafo Thiago Veloso, são rigorosas, em geral com câmera no tripé, enquadramentos elegantes, pouco parecidos com a inquietação que se associa ao Cinema Marginal feito na época. Na maior parte das vezes, as tomadas de câmera poderiam estar num drama burguês ou, se quiserem, num filme de Wim Wenders no Novo Cinema Alemão.

Nesse item, cabe sublinhar algumas façanhas técnicas. O uso da lente grande angular, por exemplo, permite ousados planos de conjunto em interiores e alarga desmesuradamente os espaços externos. Alguns planos foram feitos com a primeira lente olho de peixe trazida ao Brasil. A célebre e longa filmagem ao redor de uma praça é outro momento virtuosístico, que parece reeditar o procedimento de Tony Rabatoni em torno de Norma Bengell em Os Cafajestes.

Enquanto isso, a banda sonora é o exato oposto de toda essa justeza. Em lugar do som direto, gravado durante a filmagem, temos uma colagem anárquica de fragmentos de conversas e telefonemas, músicas gravadas ou cantaroladas, campainhas, latidos, rangidos e outros ruídos. Sem qualquer relação com o que se vê na tela. Uma radicalização do som godardiano dos anos 1960 ou de O Bandido da Luz Vermelha. Ou, ainda, como atinou Daniela Gouveia Siqueira numa tese sobre o filme, uma aproximação às experiências de John Cage.

Assim Sagrada Família nos coloca numa encruzilhada perceptiva. As imagens, seguindo o fluxo da estrada e da sucessão de (não)acontecimentos, criam uma expectativa de continuidade que não se frustra de todo, uma vez que a viagem sempre prossegue. Mas o som nos remete o tempo todo para outra dimensão, que é inútil tentar capturar como narrativa.

Essa dissociação repercute a crítica subliminar de Lanna à vida burguesa no auge da ditadura militar. Nas imagens, temos uma tradicional família mineira que parte de Belo Horizonte rumo ao sertão de Minas. Primeiro num Ford Galaxie branco, ícone da elite da época; depois, numa Rural Willys preta que envereda por estradas de terra. Em dado momento, numa tomada móvel que não pode passar desapercebida, vemos a Rural Willys abandonada à beira da estrada com os pertences da família espalhados pelo chão (foto acima). Estamos próximos do desfecho. Os personagens foram se destituindo dos seus bens (e da sua história, como reza a sinopse oficial) e entrando num ciclo de selvageria que terminará em adultério e assassinatos.

Os sons, por sua vez, evocam os tempos do desbunde nas referências a drogas, canções e poemas. Grande parte da trilha, se não toda, foi gravada pelo diretor em conversas com amigos, ao que consta durante uma temporada lisérgica no Rio de Janeiro. Funciona, assim, como um elemento de desestabilização da imagem a princípio convencional da família. De alguma forma, é como se, ao longo do filme, o som “empurrasse” a família conservadora para o caos.

Geleia de contracultura

Sylvio Lanna pensou Sagrada Família como um filme-looping: “O caminho não tem fim. Deixa o filme começar de novo…”, escreveu certa feita. Já na primeira imagem (uma tela preta), ouvimos sua voz: “Acabamos de terminar Sagrada Família. Foi em março ao findar das chuvas, logo à entrada do outono”. As mesmas frases retornam no fim do filme, com a mesma segunda imagem, da empregada, cujo nome é Geração Espontânea.   

A pretensa forma circular, porém, não desmente o rumo horizontal do road movie, da burguesia à barbárie. O despojamento contínuo da família é reiterado pelos signos materiais que carregam, todos ligados à semântica do filme de estrada e do filme de ação. Destacam-se aí os carros, as malas, as roupas (vestidas, desvestidas, engomadas, bisbilhotadas) e a espingarda, último item que fica na posse deles. Das casas luxuosas da capital mineira, partem para uma casa senhorial do interior e mais adiante para um simples casebre rural.

As músicas citadas também fazem um percurso conceitual, começando por Você não Entende Nada, de Caetano Veloso, que soa como uma pilhéria com o espectador desprevenido diante do filme. Jimi Hendrix e Bob Dylan assinalam a presença da contracultura internacional. Mini-mistério, de Gil na voz de Gal, Jesus Cristo, de Roberto Carlos, e Se Essa Rua Fosse Minha deixam a marca da geleia geral tropicalista.

Entre muitos avizinhamentos que se pode fazer, vale mencionar Godard, Andrea Tonacci (parceiro de Lanna e autor do filme-irmão Bang Bang, feito logo depois) e De Punhos Cerrados, de Marco Bellocchio, crônica trágica de uma família disfuncional que havia encantado Lanna um pouco antes. Como distintivos estéticos e temáticos do Cinema Marginal encontramos a onipresença da estrada e das bifurcações, o avanço rumo à desintegração e a abundância de referências, ainda que cifradas ou embaralhadas num tecido caótico.

A possível atualidade de Sagrada Família, a meu ver, está, por exemplo, na herança que pode ter deixado para um filme como Estrada para Ythaca, muito embora este seja norteado pela afetividade em vez da desconformidade. Mais que isso, sua verve disruptiva serve como bússola para um futuro cinema pós-pandemia que se proponha romper tanto o bom-mocismo do filme de mercado como o subjetivismo obsessivo do cinema independente.

O que disseram…

Para finalizar, selecionei quatro menções de textos alheios sobre o filme:

Geraldo Veloso, um dos montadores:

Sagrada Família já pode se prestar a exames arqueológicos de investigadores que se interessem pela pré-história da contracultura brasileira. É a trajetória de algumas pequenas tribos que anteciparam o viver ‘pop’, e ao mesmo tempo nos deu a dimensão (junto com um monte de filmes dessa época) de que era possível fazer cinema com retalhos (de filme e de realidade) do cotidiano, tirando as fantasias do fundo do baú. E esta foi uma época extremamente criativa. Convivíamos com os ecos da presença do Living Theatre em Ouro Preto. Vivemos em estado de criação e disponibilidade poética permanentes. Sagrada Família é também um documentário sobre isso”.

Remier Lion:

“No meio do mato a ‘sagrada família’ perde a noção de classe e experimenta a barbárie. No processo que vai das filmagens à finalização do filme, Sylvio Lanna também parece refazer, de certa maneira, o caminho maldito da família que aparece na tela. As gravações do cineasta podem ser ouvidas como o diário dessa ‘viagem'”.

Silviano Santiago:

“A viagem pela trilha sonora é total: ela é tema, fala e seleção auditiva. Enquanto tema, explicita-se a questão das drogas; enquanto fala, são vozes pastosas, rouquenhas e deslumbradas com as glórias e os acidentes de percurso; enquanto seleção auditiva, é um ouvido que escuta rádio e ouve discos, aprisionando detalhes de programas ou canções. E finalmente a trilha é também viagem pelas imagens do filme: aqui e ali são comentadas cenas, sem a objetividade glacial da câmera, mas com a ironia pesada de quem sabe, nas entranhas, do absurdo que são as cenas do cotidiano quando observadas sem o menor traço de sentimentalismo”.

Rogério Sganzerla:

“Eis aí uma libertação e um exercício poético de efeito contundente na avaliação das possibilidades de invenção que o cinema experimental traz ao gênero rural tradicional, insuspeitadas, revelam-se impressionantes. Ver para crer”.

SAGRADA FAMÍLIA ficará disponível a partir das 18h de domingo, 7/6, durante uma semana. A senha é sagrada2018

 

3 comentários sobre “Viagem da burguesia à barbárie

  1. Gosto muito da ousadia do Silvio. Tanto que exibi já várias vezes ao longo de décadas em mostras de invenção que realizei Brasil afora. Sempre maravilhoso compartilhar esse filme que, certamente, a cada “olhada” nos traz muito do novo que não tínhamos percebido ainda. É um filme em eterno movimento.

    • O que disse antes é bobagem. Vale esse:
      SAGRADA FAMÍLIA
      Disseram que o filme do Sylvio Lanna é perfeito.
      Discordo.
      É um bólido mais que imperfeito no indicativo e no subjuntivo de um verbo reverso.
      Inconjugável.
      O que digo nada é provado, tudo é improvável, certo?
      A ausência do artigo A é um absurdo poético que corrói a harmonia e o equilíbrio do título. Esta ausência é a chave de compreensão da imperfeição que é a corajosa meta almejada nesse jogo sem fim nem começo sem vencedor, vencido por elegante desarmonia.
      Provoca um desequilíbrio epistemológico e acústico que é a chave do risco e do perigo proposto pelo Sylvio que é Lanna no nome só que rigoroso feito pedra de montanha mineira.
      Se fosse A SAGRADA FAMÍLIA aí sim, seria perfeito, mas ele optou pelo risco de arruinar esse equilíbrio, criou atritos e sonoridades incompreensíveis atrás das portas de falas faladas em voz muito alta que não ouvimos, mudez no primeiro plano e escancarada acústica na banda sonora que incomoda e desorganiza a ordem estabelecida naquela família nada sagrada.

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