Começa hoje (terça) na Caixa Cultural-RJ a vasta programação da mostra Cacá Diegues, Cineasta do Brasil (veja o site com catálogo para download). Com curadoria de Silvia Oroz (autora do livro Carlos Diegues – Os Filmes que Não Filmei) e Breno Lira Gomes, a retrospectiva abrange curtas do início da carreira e outros materiais que nem Cacá imaginava que ainda existissem, como ele afirmou na abertura para convidados ontem à noite. Isso inclui, por exemplo, os docs A Oitava Bienal (1965) e Oito Universitários (1967) e o clipe Kamasutra, com Erasmo Carlos.
Cacá, ao comemorar 50 anos de cinema, é o penúltimo dos grandes diretores de sua geração a ser contemplado com uma mostra da obra praticamente completa no Rio. Falta agora Paulo César Saraceni.
Para contribuir no mapeamento da formação cinematográfica de Cacá, publico aqui os seus filmes-faróis, divulgados por ocasião da Mostra Faróis do Cinema no ano passado. Com a palavra, o “cineasta do Brasil”:
“Para quem faz cinema porque ama os filmes que viu, um cinéfilo antes de ser um cineasta, é muito complicado escolher apenas cinco filmes como faróis de minha vida e de minha prática cinematográficas. Meu amor pelo cinema foi iluminado por tantos faróis de tantas cores e intensidades, sinalizando tantas diferentes direções que deram e ainda vão dando o rumo de meu caminho, é dificil dizer quais foram os mais importantes . Mas vou tentar fazer um exercício aleatório de escolha, como quem joga conversa fora com coisa muito séria. E, embora até hoje eu veja filmes que me impressionam e me influenciam muito, vou ficar com citações que não passam dos anos 1970, uma homenagem à minha formação inaugural. Eis aí meus escolhidos.
1. Shadows, de John Cassavettes
Essa é minha homenagem aos “pequenos filmes” que fizeram a glória e a originalidade do cinema americano, o mais diverso do mundo. Podia ser também “Gun Crazy”, de Joseph H.Lewis, o barroco protestante chegando ao thriller. Ou “Make Way for Tomorrow”, de Leo McCarey, essa obra-prima dos sentimentos, doce e cruel instrumento de conhecimento do outro. Como podia ser “O Falcão Maltês”, de John Huston, ou qualquer outro desses filmes que, por pequenos, puderam ser roubados dos estúdios pelo talento de seus autores. “Shadows” é também uma homenagem à reinvenção do cinema, naquele final dos anos 1950, uma lembrança de “À Bout de Souffle”, de Jean-Luc Godard, ou “Prima della Rivoluzione”, de Bernardo Bertolucci. Ou ainda de “O Anjo Nasceu”, de Julio Bressane.
2. Rio 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos
Só quando vi esse filme, aos 16 anos de idade, comecei a acreditar que poderia vir a ser um cineasta brasileiro. As chanchadas me divertiam, mas no limite das paródias desengonçadas e quase sempre mal feitas. A Vera Cruz era um desastre de pretensão e chatice, do qual podia-se livrar a cara apenas de Alberto Cavalcanti e de alguma coisa de “O Cangaceiro”, de Lima Barreto, e de “Absolutamente Certo”, de Anselmo Duarte. “Rio 40 Graus” pensava o país e pensava o cinema, inventando um para o outro, tudo o que minha geração sonhara ser um dia possível. Depois dele, duas iluminações na minha vida no mesmo cinema brasileiro: “Bahia de Todos os Santos”, de Trigueirinho Neto, um filme visionário e estranhamente moderno, e “Terra em Transe”, de Glauber Rocha, o melhor filme brasileiro de todos os tempos.
3. French Cancan, de Jean Renoir.
Podia ser também “La Grande Illusion”, “La Règle du Jeu”, “La Marseillaise” ou “Le Carrosse d’Or”, outras obras-primas do mesmo autor, um dos pais do cinema moderno realista, humanista e poético, ao lado de F.W.Murnau e Roberto Rossellini. Os 20 minutos finais de “French Cancan”, totalmente dançados sem os artifícios de um balé rigoroso, mas com a grandeza de um baile da vida, é uma das mais belas expressões do que pode o cinema – eu queria fazer todos os meus filmes desse jeito! O cinema de Renoir anunciou muita coisa do que viria depois, da Nouvelle Vague francesa a todos os americanos que o conheceram em Hollywood, durante a Grande Guerra. Renoir, ele mesmo, no papel do ainda jovem Octave, em seu filme “A Regra do Jogo”, diz em cena a frase mais esclarecedora de toda a sua filmografia: “O insuportável na vida é que todo mundo tem razão”.
4. La Strada, de Federico Fellini.
Sei que seria mais “intelectual” e talvez mais respeitável citar outros filmes de Fellini, como “A Doce Vida”, quem sabe “Amarcord” ou sobretudo “Oito e Meio”, o filme querido de todos os cineastas. Mas “A Estrada da Vida” é um dos filmes que mais vejo até hoje e que me faz chorar francamente a cada vez que o vejo. Caetano Veloso diz, a propósito desse filme, que Fellini consegue o raro feito de ser “ao mesmo tempo sentimental, popular e grande artista”, uma coisa que não acontece nunca. Ou quase nunca. Um filme circense, por suas piruetas plásticas, pelo sentimentalismo dos personagens e pela dramaturgia populista assumida com tanta profundidade e dignidade. Esse céu, de onde Zampanó espera que lhe chegue alguma coisa, é o mesmo que traz à cena o magnífico corvo de “Uccelacci e Uccellini”, de Pier Paolo Pasolini, e a neve de meu “Bye Bye Brasil”.
5. The Godfather (trilogia), de Francis Ford Coppolla.
Comecei a lista com os pequenos e encerro-a com os grandes filmes americanos, um daqueles que o tornaram o segundo cinema nacional em todo lugar do mundo. Há cineastas que a gente admira e outros que a gente ama. Por exemplo, admiro muito Martin Scorsese, mas amo mesmo é Coppolla, com todos os seus gigantescos defeitos, seus equívocos tsunâmicos. “O Poderoso Chefão” é a melhor aula de história americana que o cinema podia dar desde “Cidadão Kane”, de Orson Welles, e desde os filmes de King Vidor e Elia Kazan. Um poema épico sobre a formação dos Estados Unidos e seus costumes característicos (política, ética, família, amizade, religião, essas coisas), contado com uma grandeza barroca irresistível”.