Bernardo Sayão, o mítico desbravador do Centro-Oeste, gostava de tirar uma soneca nos cinemas pioneiros do Núcleo Bandeirantes, em Brasília. Uma câmera que pertencera a Andy Warhol foi parar numa pequena produtora alternativa dos primeiros tempos da Novacap. O Polo de Cinema do Distrito Federal foi instalado inicialmente na antiga residência do general Golbery do Couto e Silva.
Fatos ou lendas, histórias como essas pontuam o recém-lançado livro Cinema – Apontamentos para uma História, de Sérgio Moriconi, parte da Coleção Arte em Brasília – Cinco Décadas de Cultura, realização do Instituto Terceiro Setor com patrocínio da Vale. Apesar do título cautelosamente modesto, é a primeira obra dedicada a contar, de maneira organizada, a história do cinema de Brasília.
Não quero com isso diminuir o valor de Cinema Candango – Matéria de Jornal, a compilação que Vladimir Carvalho publicou em 2002, acrescida de textos inéditos, e que serve de sêmen para tudo o que se vier a escrever sobre o surgimento e o estabelecimento do cinema no DF. Relevantes também são o livro de entrevistas Cineastas de Brasília, de Raquel Sá, e os dois volumes de história do Festival de Brasília, organizados por Berê Bahia e Maria do Rosário Caetano. Mas o livro de Moriconi nos oferece, pela primeira vez, uma abordagem devidamente encadeada, multidisciplinar e fartamente ilustrada por uma ótima pesquisa fotográfica.
O laço mais evidente é aquele que une o cinema brasiliense à política, seja ela fomentadora ou manietadora da atividade. Este é um cinema que nasceu com a própria construção da cidade, engatinhou no assoalho da Universidade de Brasília em plena ditadura militar, brigou por verbas junto aos governos local e federal, cresceu com o fermento das campanhas políticas e se bateu com a utopia da cidade ideal e sua negação na prática.
Jornalista, crítico, professor de cinema, sociólogo e cineasta, Moriconi é parte da história que conta – e seu entusiasmo por Brasília tempera muitos dos seus argumentos. Como a realidade antecipa o cinema, ele começa o livro com as polêmicas da transferência da capital para o Planalto Central. Na descrição das rusgas entre mudancistas e antimudancistas, sobram respingos para “uma certa elite carioca que não queria largar o osso de jeito nenhum, sentada de frente para o mar, de costas para o resto do país”.
Brasília surge, assim, como uma picada para a revalorização do Brasil interiorano, além de laboratório para a construção de novas identidades. O cinema, segundo Moriconi, vai participar ativamente desse processo.
O livro faz uma preciosa descrição dos cinerregistros pioneiros de José e Sálvio Silva durante a construção da cidade, assim como um relato saboroso dos primeiros cinemas com exibição ao ar livre. O lusco-fusco dos mitos é incorporado nesse projeto de crônica histórica marcado, às vezes, por liberdades excessivas – como o paralelo entre os coletivos de cinema da atualidade e as comunidades hippies dos anos 1960 e 70.
Alguns personagens despontam como marcos da construção de uma cultura cinematográfica em Brasília. O exibidor e cineclubista José Damata, por exemplo, ou o professor e mentor Rogério Costa Rodrigues. Mas a grande estrela, claro, é Vladimir Carvalho, que além de seus próprios filmes construiu vínculos e condições para o cinema avançar como modo de representação da cidade e como formação de memória. A trajetória do realizador José Eduardo Belmonte, por sua vez, é apresentada como “um pouco a síntese genética de toda uma geração”. Nesse capítulo das personalidades, senti falta de um maior aprofundamento no perfil e no trabalho do bombeiro-cineasta Afonso Brazza.
Isso está longe, porém, de reduzir a importância do livro como viagem pelo cinema de Brasília e arredores, e também como contribuição para o pleno conhecimento do cinema brasileiro em suas porções fora do eixo. A história da capital, de “mínima cidade” e “cidade nova” à metrópole desigual e controvertida de hoje, afinal, pode ser acompanhada razoavelmente pelos seus filmes. É o que percebemos ao fim das páginas do vistoso livro de Moriconi.