O Festival do Rio trouxe às telas de cinema a minissérie de TV Catedrais da Cultura, realizada em 3D com produção executiva de Wim Wenders. Os alemães Werner Herzog (A Caverna dos Sonhos Esquecidos) e Wenders (Pina) são hoje os maiores entusiastas do 3D como ferramenta de documentários que pretendem explorar a espacialidade de seus objetos. A arquitetura, em tese, seria um assunto de grande interesse para essa tecnologia. Catedrais da Cultura apresenta seis famosas construções pelo olhar de seis diretores de renome internacional: Wenders, Michael Glawogger, Michael Madsen, Margreth Olin, Robert Redford e o brasileiro Karim Aïnouz.
A ideia central era que os prédios se apresentassem em primeira pessoa através de algum tipo de narração. Cada um teria, digamos, uma personalidade a ser expressa no curta. O modelo é comum a quase todos os episódios: apresentam-se as linhas arquitetônicas, mergulha-se nos bastidores, enfoca-se sua relação com os usuários e conta-se um pouco da história do prédio e de seu arquiteto.
Wenders ocupou-se da sede da Filarmônica de Berlim, que se descreve como “o Titanic das salas de concerto” devido a seu design inspirado em formas navais. A abordagem “em profundidade” inclui mostrar desde a restauradora de pisos ao maestro. A sala berlinense se destaca pela forma de arena, com a orquestra ocupando o centro do espaço e o público disposto ao redor. Wenders é o que faz o melhor uso do 3D, voltando a se fartar com o efeito plateia usado em Pina. A narração é cheia de si. A Filarmônica de Berlim é vaidosa.
Karim Aïnouz teve o privilégio de tratar do Centro Georges Pompidou (foto no topo da matéria), e o fez com surpreendente reverência formal. O curta narra um dia na vida do Beaubourg, máquina cultural cravada “na lama de Paris”. Incorpora espaços, obras, espetáculos e performers. Oferece a chance rara de se conhecer um pouco das entranhas do prédio, que tanta curiosidade despertam mas às quais nunca temos acesso, até porque todo o prédio parece feito de entranhas. A autonarração dá conta de um centro cultural preocupado com o tempo que passa e o fato de não chocar mais como antes. Diz-se aliviado quando o público chega a cada manhã, temendo o dia em que ninguém venha mais. O Centro Georges Pompidou é carente.
O melhor segmento, diga-se logo, é o de Michael Madsen sobre o presídio de segurança máxima de Halden, na Noruega (a única construção não destinada à cultura). Considerada a cadeia mais humana e civilizada do mundo, Halden é uma verdadeira aldeia cercada de muros e vigiada por todos os lados. Parece mais um hotel butique com confortos inimagináveis. Os presos têm TVs de plasma e áreas de lazer em suas celas individuais, mercadinho para compras e até casa com cozinha e quintal para receber visitas familiares. O curta tem como espinha dorsal a chegada de um novo detento. Trilha sonora e ritmo das imagens são pausados, evocativos e ao mesmo tempo tensos. A narração (texto e voz da psicóloga local) é pouco ostentatória e toma um caminho de subjetividade interessante. O complexo penitenciário se vê como um preso também, alijado do resto do mundo, curioso e ingênuo ao mesmo tempo. O presídio de Halden é uma construção solitária.
Robert Redford assina o episódio mais fraco. O Instituto Salk, na Califórnia, é um conjunto de prédios ultrarracionais a serviço da ciência, dispostos numa região erma. Em lugar de uma narração autodescritiva, Redford optou por uma trama de depoimentos em off de várias vozes, incluindo o fundador Jonas Salk, o arquiteto Louis Khan e alguns cientistas que hoje trabalham no instituto. O resultado é mecânico e repetitivo. As imagens em 3D são seriamente prejudicadas por recursos inadequados, como fusões e sobreposições de materiais de arquivo, que causam uma grande confusão visual. A ideia que fica do Instituto Salk é de um ser arquitetônico circunspecto e árido.
Efeito parecido é obtido pelo austríaco Michael Glawogger ao documentar a Biblioteca Nacional da Rússia, em São Petersburgo. Ele praticamente sabotou a beleza dos salões de leitura para concentrar-se nos labirintos vetustos de uma biblioteca estagnada no tempo, aparentemente não informatizada. Estamos no reino dos imensos arquivos de fichas, dos carimbos e de bibliotecárias curvadas sobre pilhas de livros e anotações. O ambiente parece kafkiano. Também aqui a narração foge à primeira pessoa, valendo-se de um apanhado de citações literárias que não forma ideia nenhuma em especial. Pela ótica do filme, a Biblioteca Nacional da Rússia é um tesouro melancólico e decadente.
O conjunto se completa com um retrato simpático da Ópera de Oslo pela cineasta Margreth Olin. Suas câmeras se abrem sobre os grandes espaços brancos do edifício e seu entorno, além de registrar cantores e bailarinos em ensaios e aquecimentos. Margreth não explora tão bem a arrojada modernidade do edifício como Wenders fez com a Filarmônica de Berlim, mas cria uma personalidade curiosa através do texto. A partir do nome Oslo Opera House, o edifício se identifica como “apenas uma casa” que só ganha vida quando os artistas e o público pisam nela. Está ali a serviço dos homens e deles diz depender. A Ópera de Oslo é humilde e gentil.
A par de suas belezas e virtudes, Catedrais da Cultura tem lá seus pontos frágeis. A começar por esse formato de autonarração, que pode parecer naïf e até inapropriado a um documentário sobre obras dessa natureza. Além disso, com apenas duas exceções (a prisão e a biblioteca), não se foge muito de uma visão promocional e superficial desses marcos arquitetônicos. No que diz respeito ao 3D, a sensação de “presença” é proporcionada apenas ocasionalmente, pois na maior parte do tempo não faria grande diferença para uma boa cópia bidimensional. Sem falar no escurecimento que os óculos provocam nas imagens.