O mundo como call center

Tomando-se as ações concretas de Anomalisa, a princípio nada justificaria a opção pela animação. Atores com máscaras e dois ou três efeitos especiais poderiam dar corpo ao roteiro. Vemos um homem comum, especialista em técnicas de atendimento ao cliente, desembarcar em Cincinatti para fazer uma conferência motivacional. A expertise de Michael Stone, porém, contrasta com seu fracasso nas relações interpessoais. Ele está se separando da mulher e vivendo uma crise de carência e depressão. No hotel, vai se sentir atraído por uma voz especial e experimentar uma sensação rara em sua vida. Os personagens, os ambientes e as situações são melancólicas e realistas como uma exposição de Edward Hopper. Mas à medida que o cenário humano vai se abrindo ao redor de Michael, o fato de ser uma animação vai ganhando mais e mais sentido.

O estranhamento essencial em Anomalisa vem justamente do fator não humano dos bonecos de stop motion agindo com a mais prosaica das humanidades, seja no banho, nas conversas ou no ato sexual. Charlie Kaufman nos coloca mais uma vez no limiar entre a normalidade e a anomalia, a subjetividade e a alteridade, o indivíduo e a multidão. O mundo nesse filme parece um grande call center dominado pela cortesia programada e os discursos chavões, tudo levado ao paroxismo.

Michael Stone pode ser visto de duas maneiras: ou como o portador de uma disfunção que o faz ver todo mundo como uma pessoa só, ou como o homem ordinário às voltas com a sociedade padronizada por clichês de comportamento e consumo, representada no filme pela uniformização de fisionomias e falares. Tom Noonan faz as vozes de todos os personagens, homens e mulheres, exceto Michael (David Thewlis) e Lisa (Janet Jason-Leigh). As performances vocais ampliam nossa identificação com Michael e Lisa, enquanto nos assombram com as demais pessoas, num clima de inquietação que chega a se aproximar do terror.

Poderia ser uma fábula sobre o encontro do amor naquilo que nos chega como singular, diferente de tudo, até pelas imperfeições. Mas o toque amargo de Kaufman nos reserva outros desdobramentos, com outras camadas de leitura. Anomalisa pode ser uma joia ou uma anomalia no cenário cinematográfico, mas nada que possa ser visto com indiferença.

Obs.: Ao explicar a Lisa o que significa “anomalia”, Michael cita o Brasil como único país da América do Sul a falar o português. Uma anomalia.

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