Imersão vertoviana

Texto publicado originalmente no folheto de programação mensal do Instituto Moreira Salles

De várias maneiras o Cinema Novo já foi tema de filme. Em sua plena vigência, foi objeto de atualidade para TVs estrangeiras em Cinema Novo (Improvisiert und Zielbewusst), de Joaquim Pedro de Andrade, e Les Carnets Brésiliens, de Pierre Kast. Foi abordado com foco na obra de cineastas individuais (Glauber Rocha, principalmente) e em filmes específicos, como A Idade da Terra, em Anabazys, de Joel Pizzini e Paloma Rocha, e O Padre e a Moça, em O Mundo de um Filme, de Camila Maroja, Clara Linhart e Daniel Caetano.

Hoje, 55 anos depois de sua eclosão, com a estreia de Barravento, aquele momento seminal do cinema brasileiro moderno ainda desafia compiladores e intimida interpretações definitivas. A um só tempo, o Cinema Novo é cultuado pelos que o têm como modelo de inquietação e respeitosamente posto de lado pelos que o creem superado. Eryk Rocha está entre os primeiros, por razões muito mais estéticas que genéticas. Sua crença num cinema que associa poesia e política o coloca como um herdeiro direto. Se em Rocha que voa ele deu corpo fílmico a um discurso do pai sobre o exílio e o sonho de uma América Latina revolucionária, em Cinema Novo ele abre o compasso para abarcar uma espécie de família estendida.

Bem diferente dos filmes citados no primeiro parágrafo, Cinema Novo não trabalha no âmbito da informação nem da explanação arqueológica, mas no da imersão. O filme nos introduz prontamente num redemoinho de imagens e sons, todos produzidos na época. A princípio, não seria assim. Eryk gravou dezenas de horas de entrevistas atuais com personagens do Cinema Novo. Queria confrontar passado e presente. No meio do caminho, mudou de ideia. Deixou apenas uns poucos fragmentos de áudio das entrevistas que fez. Na imagem, além dos trechos de filmes, ficaram somente depoimentos de cineastas tomados nos anos 1960 ou 1970.

Não que o filme se exima de oferecer um olhar externo sobre o material. Mas esse olhar se constrói somente na organização da montagem, que é onde reside a brilhante contribuição de Cinema Novo. Por um lado, a seleção, a inserção e as interlocuções criadas entre as cenas de filmes, na edição tonificante de Renato Vallone, potencializam o vigor cênico, a qualidade artística e a energia política do movimento. A estupenda edição sonora transcende o material original para criar uma suíte arrebatadora. Por outro lado, as mesmas aproximações de caráter ensaístico entre filmes às vezes muito diversos colocam questões nunca resolvidas a respeito do Cinema Novo.

Sempre houve, entre os próprios cinemanovistas, o discurso de que existiram “vários cinemas novos”, com temas, preocupações e estéticas razoavelmente distintas. Essa tese, repercutida também no filme, é confrontada com o trabalho de compilação, que aponta grandes linhas de unidade correndo dentro da diversidade. Lá estão as armas, os êxtases, as corridas desabaladas pelo campo ou pela cidade, as imagens de agonia e dissolução, os indivíduos na estrada, as favelas, os sambistas, os bares e as ruas que ficaram como distintivos de um momento glorioso da cultura brasileira.

Um movimento ou apenas um momento? Sincronicidades eletivas ou meras coincidências? De que maneira a identificação de ideais e de modos de produção se refletiu na própria matéria dos filmes? Como uma visão relativamente distanciada e movida pela poética pode fazer emergir sentidos profundos de um certo estado da arte? São algumas das muitas perguntas sugeridas e tacitamente respondidas por Cinema Novo.

Vertoviano, o documentário integra filmes e bastidores num fluxo irresistível de imagens-ideia. É o movimento em movimento. Navegando, por exemplo, da máquina de costura de Limite a uma moviola, e dali à costura das redes de Arraial do Cabo, Eryk Rocha tece uma genealogia do Cinema Novo, que vem até seus herdeiros, como Iracema, uma Transa Amazônica, de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, e Eles não Usam Black-tie, de Leon Hirszman. Ainda que sem qualquer ênfase especial, coloca-se também a perspectiva historiográfica. Assinala-se, por exemplo, como o golpe de 1964 e o AI-5 feriram a carne do cinema e deixaram marcas de tensão e dor.

Os registros preciosos incluem Mario Carneiro, Leon e outros disputando uma animada partida de pingue-pongue; uma divertida sucessão de cineastas dando depoimentos em francês; Luiz Carlos Barreto apresentando a Difilm, e muito mais. Pode-se questionar a ausência de imagens de O Pagador de Promessas, evocando assim a eterna polêmica que abraçou e depois expulsou o filme de Anselmo Duarte do contexto cinemanovista). Ou a inclusão de Jardim de Guerra, de Neville d’Almeida, bem mais identificado ao Cinema Marginal. Mas Cinema Novo, vencedor do prêmio Olho de Ouro de melhor documentário do Festival de Cannes de 2016, chegou mesmo para repor o Cinema Novo em discussão, 50 anos depois do seu auge.

Um comentário sobre “Imersão vertoviana

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