O funk no Rio e uma ONG no Chade

Sobre o documentário FUNK BRASIL – 5 VISÕES DO BATIDÃO e o docudrama OS CAVALEIROS BRANCOS

O doc FUNK BRASIL – 5 VISÕES DO BATIDÃO começou carreira ano passado no antigo Joia de Jacarepaguá, mas ainda não chegou ao resto da cidade. Produzido pela Cavídeo e o Programa Favela Criativa, reúne cinco curtas, sendo quatro deles realizados por legítimos representantes de comunidades do Rio. A exceção é o primeiro, de Cavi Borges e Christian Caselli, uma espécie de duelo documental dos titãs Rômulo Costa (Furacão 2000) e DJ Marcão (Cash Box), relembrando esses gigantes precursores do funk carioca atual. Os depoimentos são entrecortados por cenas de grandes velhos bailes e um visagismo maneiro que emula a estética VHS.

No extremo oposto da cronologia, a cantora Lexa fecha o filme com um exemplo de funk levado ao mainstream pop, com tripla quebra de paradigma: Lexa é branca e loura, superproduzida e empresariada no melhor estilo superstar. A direção é do experiente Luciano Vidigal.

Os outros três curtas focalizam o grupo Bonde do Tigrão, o MC Menor do Chapa e o MC Magalhães. Os dois primeiros falham em fixar a personalidade e demonstrar o talento de seus retratados, mas o curta de Marcelo Gularte sobre o folclórico MC Magalhães leva toda pinta de ser um falso doc sobre personagem inventado. De certa forma, Magalhanze (como ele se chama) está no limite entre a realidade e a ficção. Sucesso nos anos 1990 com o Rap do Trabalhador, ele nunca largou o ofício de vendedor de balas na rua e tem visíveis comprometimentos mentais advindos de uma meningite. O curta nos atira num turbilhão de impressões contrastantes. E seu autor acaba de lançar o livro A Lenda do Funk Carioca.

Mesmo com suas irregularidades, FUNK BRASIL faz um corte interessante no mundo do funk. Deixa patente, entre outras coisas, as diversas variantes que vão bem além do batidão e do proibidão. Mostra também que dinheiro e afirmação estão no léxico e no imaginário de todos os seus praticantes. É indústria popular, fortuna da pobreza, brilho da periferia.



Diante de OS CAVALEIROS BRANCOS (visto no Netflix), o espectador demora um tanto a compreender o contexto em que se passa a história. Os fatos que inspiraram o filme se passaram em 2007, no Chade. Um grupo da ONG francesa L’Arche de Zoé reuniu 103 supostos órfãos da guerra civil com o intuito de levá-los ilegalmente para adoção na França. A operação clandestina resultou num folhetim político-judiciário que se estenderia pelos sete anos seguintes.

O filme do belga Joachim Lafosse (“A Economia do Amor”) detalha – e talvez romantize um pouco – a complicada relação do grupo internamente, assim como com líderes tribais africanos, trabalhadores locais, famílias afligidas pela guerra e a miséria, militares e grupos armados envolvidos no conflito. O empreendimento da ONG oscilava na ambiguidade entre ética humanitária e corrupção, intenções nobres e estratégias mentirosas. Podia ser visto tanto como uma iniciativa sincera de ajuda a crianças sem perspectiva de sobrevivência, quanto como uma forma mal disfarçada de neocolonialismo.

O público é levado a partilhar essas ambivalências pelo tipo de narrativa empregado, que lembra bastante os filmes de Michael Winterbottom. De alguma forma, o filme duplica o olhar da jornalista que acompanha e registra o trabalho do grupo nas aldeias do Chade. Assim, temos uma câmera do tipo documental, mais disposta a observar do que a construir efeitos de dramaturgia. Daí resulta uma eficaz imersão nas discussões, contatos e tensões dos personagens através das etapas cada vez mais atribuladas da operação. É um bom filme, sem dúvida, mas convém reparar que só se interessa pelos tais “cavaleiros brancos”, ficando os africanos como meros objetos da ação. Aqui se trata não do neo, mas do velho colonialismo cinematográfico mesmo.

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