A CIDADE DOS PIRATAS
A reunião de Otto Guerra e Laerte Coutinho não poderia render menos que coisa boa. A CIDADE DOS PIRATAS junta a irreverência iconoclasta do gaúcho Otto com a acidez política da paulista Laerte numa enxurrada de inteligência e humor.
Não esperem ordem ou disciplina narrativa, pois este não é o caso. A estrutura do filme é a princípio caótica, mas depois percebemos que é labiríntica, como convém a um roteiro (de Rodrigo John) em que um dos personagens principais é um minotauro. Tudo parte de uma meta-animação: Otto Guerra está fazendo um filme com “Os Piratas do Tietê” de Laerte, mas começa a interferir como personagem com suas questões pessoais, inclusive uma cirurgia contra um câncer que lhe apareceu em 2013. É quando a produtora Marta Machado intervém e o filme resolve se libertar de todas as amarras.
A melhor forma de curtir A CIDADE DOS PIRATAS é tomá-lo como uma sucessão de gags impagáveis, reunidas em torno não só do Capitão Perna-de-Pau, como de um político ultraconservador assombrado pela paranoia de uma ditadura gay no Brasil e, principalmente, de um homem casado que sai à rua travestido de mulher. Em meio ao ritmo incessante de piadas desaforadas e/ou escatológicas, a própria Laerte aparece em programas de entrevista e recontando sua transformação.
Há espaço ainda para Fernando Pessoa navegar pelo Tietê (a lista de tarefas do poeta é um dos pontos altos do filme), para surgir um certo movimento dos Jovens Virgens e para a propagação de um tal “vírus Mariel”, que altera fulminantemente o gênero dos homens afetados.
Laerte, que há muito abandonou os personagens fixos, deixou-se engolir pelo apetite pantagruélico de Otto Guerra, que arrotou uma mistura dos dois talentos. Ao longo dos 25 anos em que gestou esse projeto, Otto somou referências e recursos para viabilizá-lo. A homofobia e a transfobia são o alvo central, embora sobrem balaços para a colonização do Brasil no século XVI e para as incertezas da produção cinematográfica. Os personagens e filões se entrecruzam em velocidade e nem sempre as coisas que fazem graça parecem fazer sentido. Mas, afinal, como diz o Piratão, “quem faz sentido é soldado”.
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