A vida e o imaginário que atravessam um supermercado de São Paulo e uma escola de Sergipe
Fabulações entre prateleiras
No princípio era a luz fluorescente, a instalação do piso e da parte elétrica, a montagem das prateleiras. Depois veio o verbo: as indicações de onde ficará cada produto. Em seguida, as prateleiras foram cuidadosamente preenchidas. Por fim e aos poucos, apareceram as criaturas humanas.
Na primeira sequência, a gênese de um supermercado, já vemos que a diretora Tali Yankelevich e sua equipe não querem apenas deixar um depoimento sobre o mundo, mas também fazer bom cinema.
Essa impressão se estende por todo o resto de Meu Querido Supermercado, filme em que tal espaço, tão estratificado e mesmo estigmatizado, ganha uma ressignificação como lugar de romance, comédia, fantasia, especulações metafísicas, terror e outras fabulações. A proposta é mostrar que, em meio a frutas, iogurtes e cortes de carne, existem pessoas com sonhos, curiosidades, humores e dramas. Dito assim, pode soar ingênuo e óbvio. Mas é na forma como Tali trabalhou essa ideia que reside o encanto inusitado do documentário.
A montagem excepcional de Marco Korodi, que também assina como corroteirista, privilegia os fragmentos de conversas entre os funcionários (nenhum “chefe” em cena) ou de falas para a câmera a fim de criar um mosaico de vivências apenas insinuadas. Uma câmera perspicaz capta detalhes corporais ou do cenário comercial, que vão sendo incorporados ao discurso principal. Tudo se encaixa harmoniosamente, seja como referência direta, seja como metáfora.
Entre os personagens destacam-se o funcionário da padaria, aplicado estudioso de física quântica e mistérios históricos, e a divertida relação de afeto que mantém com uma colega de setor; o padeiro apaixonado por mangás e reticente quanto a namoros; a vigilante que observa virtualmente a filha operando no caixa; o empilhador que aprecia games de construção de cidades; o caixa que se deixa enamorar por clientes que passam diante dele.
Pelas perguntas colocadas em off na cena de abertura, presume-se que Tali Yankelevich partiu do mesmo ponto que Jean Rouch e Edgar Morin em Crônica de um Verão, ou seja, indagações simples sobre a felicidade. Assim emergem considerações sobre amor, fé, vida depois da morte, trabalho repetitivo, dedicação profissional.
Apesar de algumas alusões a ataques de ansiedade e solidão, não há um interesse crítico pela exploração do trabalho num dos templos do capitalismo. Alguns podem até achar que o filme funcione como um institucional daquela rede de supermercados, com tanta gente sorridente e trabalhando com prazer em ambiente organizado, higienizado e razoavelmente agradável. O teor afetivo do título aponta para isso.
O filme opera, porém, numa chave humanística, realçando o contraste entre a imagem pública do supermercado e o imaginário de pessoas que os habitam por muito mais tempo do que a maioria de nós, que apenas passamos por ali sem atentar para elas. Nisso, Meu Querido Supermercado é de uma eficácia admirável. E muito, muito divertido.
Minha escola, minha vida
Em 2005, João Jardim percorreu escolas de classes sociais diferentes em três estados brasileiros para fazer um diagnóstico do possível futuro do Brasil. Era Pro Dia Nascer Feliz, documentário que sinalizava uma tragédia em potencial (leiam minha resenha aqui). Treze anos depois, o cineasta se ancorou numa única escola pública do interior de Sergipe, na cidade de Simão Dias (estimados 40 mil habitantes), novamente para ouvir alunos e professores. Atravessa a Vida acaba refletindo, nos adolescentes de uma turma do 3º ano do ensino médio, a polarização e o estado de depressão que já caracterizavam o Brasil de 2018.
Numa aula de História, o professor aponta a contradição existente nos alunos que apoiam a pena de morte e são contrários ao aborto. Discussões sobre liberdade e ditadura deixam claro o desconhecimento da maioria dos jovens e a consciência de uns poucos. As famílias estão ausentes do filme, mas percebe-se a provável influência que os filhos trazem de casa. Ou, por outra parte, a difícil relação com os pais, o distanciamento dos pais (homens) e o efeito disso sobre os estudos.
O colégio em obras acaba funcionando como uma metáfora dessas personalidades em construção. Nota-se a importância dos influxos que podem receber da escola, especialmente dos professores mais progressistas. Mas é árdua a batalha contra a anomia, a indiferença, o desinteresse. Basta comparar o engajamento dos alunos nas atividades recreativas com a displicência dominante nas aulas.
Fora do ambiente da sala de aula, João Jardim colhe depoimentos lancinantes de meninos e meninas angustiados com a situação familiar e as tênues esperanças que mantêm para o futuro pós-Enem. No limite, chega-se à depressão, à autoflagelação e ao suicídio. As eleições de 2018 se aproximavam e o cenário do país obscurecia-se junto com a expressão dos personagens. Uma convergência das mais sombrias.
Filmado nos três meses que antecederam o Enem, Atravessa a Vida tem momentos fortes, mas carece de uma estrutura mais coesa e um sentido de progressão que seria próprio desse tipo de documentário. São personagens demais, que não conseguem se estabelecer plenamente. Com isso, o filme atira em várias direções, rascunha diversas observações e até surpreende por encontrar tantas questões num único grupo, mas falha em dar a tudo isso uma sintaxe, um senso de narrativa.
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