O chileno Patricio Guzmán e o argentino Andrés Di Tella encerram suas respectivas trilogias sobre memórias do país e da família
Filmar para não deixar esquecer
Os Andes são 80% do território do Chile, mas para Patricio Guzmán a cordilheira está ligada à ideia de passado. No filme, ele volta à casa onde nasceu, hoje uma ruína por trás da fachada pintada com grafites. No final, retorna ao mesmo lugar e mostra a fachada restaurada e limpa. Agora Santiago não o reconhece mais, nem vice-versa. O Chile é sonhado desde longe, e a cordilheira é a metáfora desse sonho.
Guzmán filma um outdoor da cordilheira no metrô e entrevista o pintor que a pintou. Ele sente o cheiro trazido da cordilheira pelos ventos. Conversa com outro escultor que trabalha com pedras enormes tiradas das montanhas. E ainda com um vulcanólogo, que afirma: “Quanto mais avançamos na cordilheira, mais antigos são os mundos que vamos encontrando”. Sempre a cordilheira como guardiã do passado, testemunha silenciosa da história do Chile. Ela é um muro que separa o país do resto do mundo mas também o protege.
Em dado momento, o diretor volta à casa onde morava quando fez A Batalha do Chile, e a partir daí esquece a cordilheira e passa a tratar de seu tema obsessivo: a queda de Allende em 1973. Associa o golpe de Pinochet a um vulcão em erupção, numa de várias tentativas um tanto forçadas de conectar a cordilheira com a tragédia política chilena. Em outro momento, filma os paralelepípedos das ruas (feitos de pedras da cordilheira) já pisadas por manifestantes e cruzadas pelos tanques militares até revelar as placas de nomes de vítimas no calçamento. Dedica um grande tempo a conversar, seguir e mostrar os filmes de Pablo Salas, cineasta que, ao contrário dele, ficou no Chile filmando a resistência à ditadura. Salas possui um acervo imenso de fitas de vídeo, muitas cenas de violência do Exército contra civis, mulheres e estudantes.
É preciso não deixar esquecer, eis a pauta guzmaniana de sempre. O neoliberalismo implantado pela ditadura perpetuou as desigualdades sociais e criou uma estabilidade desumana. A ditadura venceu, conforma-se um escritor entrevistado. Restou o Chile invisível dos pobres e do cobre que é extraído em silêncio na cordilheira por empresas estrangeiras.
Estão hoje vazios os escritório de Pinochet, onde nasceu o Chile atual, moderno mas cruelmente desigual. Os protestos do final de 2019 ainda não tinham acontecido quando Patricio Guzmán montou essa conclusão de sua Trilogia, iniciada com Nostalgia da Luz (2012) e O Botão de Pérola (2015). Um gesto poético e melancólico de volta ao passado e indignação com o presente.
Mais estranho do que íntimo
Nem tudo o que nos é íntimo deixa de ter algo de estranho. Em tudo o que nos é estranho podemos encontrar alguma coisa de pessoal. Foi por aí que tentei entender Ficção Privada (Ficción Privada). Andrés Di Tella se debruça sobre as cartas trocadas entre seu pai, Torcuato Di Tella, e sua mãe, a indiana Kamala Di Tella. Ele não entende bem porque os dois se comunicavam tanto por cartas. Chama dois jovens atores para as lerem em voz alta e as comentarem. Quer imaginar o que pensavam seus pais quando moços, antes mesmo que fossem seus pais.
Temos, então, dois jovens investigando os sentimentos de pessoas que não conheceram. As imagens reunidas pelo diretor – ruas de Buenos Aires, Londres, Madras – quase nunca dizem respeito ao que se ouve em off. Interessa juntar o estranho ao conhecido, o pessoal ao aleatório. Carregar imagens “alheias” de algum sentido pessoal. Nisso entram também trechos dos dois ensaios familiares que Di Tella já fez a respeito dos seus pais: A Televisão e Eu (2002) e Fotografias (2007).
Ficção Privada é certamente o mais frustrado dos três. Uma estrutura dispersiva e lacunar não deixa saber onde Di Tella quis chegar. O veterano documentarista Edgardo Cozarinsky participa de algumas cenas, talvez como uma figura paterna, mas sem função definida no emaranhado de ideias e dispositivos do filme. Também a filha de Andrés, a adolescente Lola, conversa com ele sobre esse interesse do pai pela intimidade dos avós. Os conceitos são frágeis, as conexões são tênues. No fim das contas, até o íntimo soa estranho.