Histórias de dois grandes artistas imigrantes, Claudia Andujar e Milos Forman, semelhantes na origem e muito diversos nos destinos
A “mãe” dos yanomami
Pode-se até considerar que a fotógrafa Claudia Andujar mereceria uma abordagem mais detalhada de sua incrível biografia e de sua obra fotográfica admirável. Mas também é possível compreender a opção quase espartana de Mariana Lacerda no sentido de mostrar Claudia somente pela vivência de uma visita à aldeia yanomami Demini, no Amazonas.
O título Gyuri se refere a uma paixão adolescente de Claudia, que ela relembra no longo monólogo de abertura do filme, sobre sua infância e juventude numa Europa do Leste em guerra. Mariana lhe pediu que falasse em húngaro (a língua de sua formação) para reconectá-la com o tempo narrado. Claudia discorre penosamente, esforçando-se por se lembrar das palavras com a ajuda do filósofo Peter Pál Pelbart. Em seguida, em condições físicas também excruciantes, aos 86 anos, ela chega em cadeira de rodas à maloca dos yanomami para reencontrar o líder Davi Kopenawa, que a chama de mãe. “Ela veio para nos salvar”, reconhece, completando com uma frase linda: “Minha alma está no colo dela”. .
Junto com o missionário leigo Carlo Zacquini, que a acompanha nessa viagem, Claudia empreendeu uma longa, e finalmente vitoriosa, luta pela demarcação das terras dos yanomami. Viveu entre o Amazonas e Roraima em boa parte da década de 1970, numa militância pela preservação da vida indígena que bem pode ser vista como uma compensação pelas perdas sofridas na guerra. Recolhemos fragmentos dessas histórias nas conversas de Claudia e Davi, mas o filme funciona mesmo como um estímulo a que conheçamos melhor a saga dessa guerreira sem plumas.
Em seu primeiro longa-metragem, Mariana Lacerda demonstra um respeito pelo tempo das coisas que filma. Não há bravuras de edição, nem efeitos narrativos ostensivos. Conversas, deslocamentos e microações se dão no ritmo mais natural possível – e é curioso ver como os tempos de Claudia e dos indígenas, afinal, se parecem. As fotografias (poucas, infelizmente) são expostas pausadamente e sem cobertura de áudio além das sonoridades criadas pelo duo O Grivo. O fotógrafo Marcelo Lacerda cria imagens de grande beleza na aldeia, sobretudo com as adoráveis crianças yanomami.
Um filme austero, que procura captar o espírito daquilo que mostra, em vez de falar sobre ele.
O mundo de Milos
Como Claudia Andujar, o cineasta Milos Forman (1932-2018) também nasceu na Europa Oriental (uma pequena cidade da ex-Tchecoslováquia), perdeu os pais nos campos de concentração e esteve em internato como órfão de guerra. Viria a ser também um imigrante que reconstruiu a vida em outro país, no caso de Forman, os Estados Unidos. Ainda como Claudia, ele conta parte dessa história na sua língua natal (dividindo sua própria voz com a narração pelo filho Petr).
De resto, tudo é muito diferente. Depois de entediar-se com o cinema do realismo socialista, ele foi o mais destacado criador da Nouvelle Vague tcheca (Pedro, o Negro, Os Amores de uma Loura). A mudança para os EUA o libertou das amarras do stalinismo e o transformou num paladino da liberdade, muito embora ele mesmo admita que “a liberdade é uma palavra que parece feita de barro, cada um a molda como quer”.
Forman vs. Forman é um título que alude ao seu The People vs. Larry Flint mas não se justifica no documentário dos compatriotas Helena Trestíková e Jakub Hejna. Não há dissensão nem antagonismo. O próprio Forman se narra através de trechos de dezenas de entrevistas à TV, em festivais e making ofs. Ainda muito jovem, descobriu que Rudolf Forman não era seu pai biológico. Este, ao ser localizado, não quis saber do filho. Quando os tanques soviéticos interromperam a Primavera de Praga, Milos estava em Cannes com seu O Baile dos Bombeiros, que acabou não sendo exibido devido à interrupção do festival pelos cineastas que aderiram ao movimento estudantil.
Convidado a dirigir Procura Insaciável em Hollywood, nunca mais voltou para Praga, onde deixou mulher e filhos. Passou a acumular grandes sucessos de público e crítica, como Um Estranho no Ninho, Hair e Amadeus. E também filhos gêmeos, que teve com as duas esposas. De hóspede não pagante do Chelsea Hotel passou a milionário americano. Com a cultura do seu novo país manteve uma relação ambígua. Procura Insaciável, por exemplo, reflete o seu desencanto inicial com os hippies – é sobre isso uma das melhores entrevistas do filme. Oito anos depois, os sinais estavam trocados e ele celebrava o hippismo na contagiante versão cinematográfica de Hair.
Autorretrato póstumo de um cineasta extraordinário, Forman vs. Forman vale como uma bela história de sucesso entre as armadilhas históricas do século XX.