É Tudo Verdade: “O Rolo Proibido” e “Filmfarsi”

Dois documentários descortinam os segredos do cinema perseguido no Afeganistão e no Irã

Salve o cinema

A tragédia anunciada da Cinemateca Brasileira dobra o interesse de O Rolo Proibido (The Forbidden Reel). Lá está a história de uma filmografia nacional salva por circunstâncias, diria, “cinematográficas”.

Quando os talibãs tomaram Cabul e impuseram o terror religioso-cultural, chegaram ordens de queimar todo o acervo da Afghan Film, a produtora estatal que sustentou o cinema no país desde 1968. Se isso não aconteceu de maneira mais drástica foi por algumas estratégias que dá gosto descobrir no próprio documentário do afegão-canadense Ariel Nasr.

Através de depoimentos de dois grandes cineastas, ambos ex-presidentes da Afghan Film, e da veterana atriz Yasmin Yarmal, o filme recupera momentos e cenas importantes do cinema afegão, desde seus primórdios nos anos 1940. A revolução comunista de 1978 trouxe os anos de ouro da produção cinematográfica, com um florescimento inédito dos filmes de ficção. Mas logo o regime pró-soviético, agravado pela invasão da URSS, passou a enfrentar a resistência dos guerrilheiros islâmicos liderados por Ahmad Massoud.

Os principais narradores de O Rolo Proibido são os diretores Latif Ahmad, na época ligado aos comunistas, e Siddiq Barmak, associado aos rebeldes. Eles e seus colegas seguiram filmando em meio à guerra, que se estendeu como guerra civil entre grupos islâmicos após a queda do regime. Depois vieram os talibãs, os cinemas incendiados, a televisão proibida, etc. Siddiq filmou o corpo do ex-presidente Mohammad Najibullah pendurado na rua depois de torturado até a morte.

Mariam Ghani

Graças à esperteza de uns e à consciência de um talibã excepcional, podemos ver cenas históricas, dolorosas e impactantes como os sobrevoos numa Cabul completamente destroçada. Mas também muitas imagens prosaicas do cotidiano urbano e trechos impagáveis de dramas e filmes românticos à moda afegã. Por trás da restauração desse acervo está também a artista visual, fotógrafa, cineasta e ativista social afegã-americana Mariam Ghani, que é nada menos que filha do atual presidente do Afeganistão, Ashraf Ghani. No filme, a charmosíssima Mariam passa um ensinamento que deveria ser ouvido por dirigentes de cinematecas de todo o mundo: “A melhor forma de preservar filmes é fazê-los circular, espalhando cópias por diversos lugares”.

Não duvido que o dedo de Mariam esteja por trás da nomeação, no ano passado, da cineasta Sahraa Karimi como a primeira mulher a presidir a Afghan Film.


O lado B do cinema iraniano

A exibição única de Filmfarsi no festival foi uma atração imperdível para os interessados pela história do cinema. Uma grande surpresa para quem só conhecia o cinema iraniano de Kiarostami e Makhmalbaf em diante. Entre o golpe anglo-americano de 1953 no Irã (abordado no festival com o filme Golpe de 53 e a revolução dos aiatolás em 1979 floresceu um cinema popular e ultracomercial no país. Eram chanchadas, melodramas e musicais recheados de clichês, mulheres seminuas sob o olhar concupiscente de machos tóxicos, mães e prostitutas em perigo, muitos remakes de filmes americanos e europeus. Na década de 1970, eram produzidos cerca de 100 filmes por ano*.

Esse acervo passou à clandestinidade no regime islâmico, ao mesmo tempo em que cinemas eram queimados e profissionais mudavam de ofício ou partiam para o exílio. O arquiteto, curador e pesquisador cinematográfico Ehsan Khoshbakht, iraniano radicado em Londres, reuniu trechos de dezenas desses filmes, conservados em VHS ilegais, para contar a curiosa história do chamado filmfarsi (combinação pejorativa de “filme” e “persa”).

Pena que a narração muito editorializada na voz do próprio diretor apresente o assunto na forma de uma tese acadêmica. Para quem é leigo na tortuosa história iraniana, fica difícil destrinchar as motivações e divisões identitárias por trás daqueles filmes. Exemplo disso são os personagens arquetípicos do jahel (criminoso) e do pahlevan (bom homem), assim como a pulsão revolucionária embutida, segundo o diretor, em várias tramas apresentadas sucintamente.

Ainda assim, temos aqui um pequeno tesouro historiográfico, com ótimas ideias de montagem para evidenciar os sintagmas do filmfarsi e expor sua ousadia dentro de uma sociedade tão tradicional quanto a iraniana. Quanto à chamada Segunda Onda do Novo Cinema Iraniano que iria surgir nos anos 1980, Khoshbakht limita-se a citar que nomes como Dariush Mehrjui e Abbas Kiarostami tiveram suas raízes no filmfarsi.

*Esse dado informado pelo filme é contestado pela especialista Ivonete Pinto. Segundo ela, o Irã produziu uma média de 60 filmes/ano na década de 1970.

4 comentários sobre “É Tudo Verdade: “O Rolo Proibido” e “Filmfarsi”

  1. Gostei demais do filme. Também percebi o formato acadêmico na narração do diretor, mas é mesmo uma aula sobre cinema iraniano do período, não? Bjs

  2. Carlinhos, o documentário é ótimo, mas o número de 100 filmes/ano da década de 70 está inflacionado. O Irão produziu uma média de 60 filmes/ano neste período.

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