Documentários indicados ao Oscar: “Ascension”

Dos quinze documentários que constavam da shortlist do Oscar 2022, eu tive oportunidade de ver nove. Dos que vi, lamento a ausência de apenas um entre os cinco indicados, o fenomenal Presidente, vencedor do É Tudo Verdade com a radiografia das eleições presidenciais de 2018 no Zimbábue (leia a resenha de Paulo Lima no meu blog).

Os indicados foram Attica, Summer of Soul, Fuga, o indiano Writing with Fire e o chinês Ascension. Todos de altíssima qualidade e muito diversificados em seus temas e formas de abordagem. Já escrevi aqui no blog sobre Summer of Soul (leia aqui) e Fuga (aqui). Nos próximos dias vou compartilhar minhas impressões sobre os demais, a começar hoje por Ascension, de Jessica Kingdom, que nos transporta ao coração do neocapitalismo chinês. Este filme ainda não chegou ao circuito brasileiro.

ASCENSION: Tempos modernos

Num ponto de recrutamento de trabalhadores em Shenzhen, as exigências soam absurdas: “Tatuagens não são aceitas” ou “Exigem-se impressões digitais completas”. Numa academia de formação de mordomos em Chengdu, os alunos aprendem a medir milimetricamente a colocação de talheres e copos à mesa e a suportar os maus bofes da elite com um sorriso nos lábios. Num centro de treinamento de “business etiquette” em Xangai, ensina-se como abraçar e como mostrar apenas oito dentes superiores ao sorrir.

“Minha glória está ligada a minha empresa”, recita em uníssono um grupo de empregados. “O conhecimento de vocês precisa ser monetizado”, instiga uma motivadora funcional. Outra coach explica por que tem tantos fãs: “Nós vivemos a era da fan economy e do star boss. Vocês têm que ser fãs dos seus chefes para um dia ter também os seus fãs”.

Ascension nos transporta ao coração do neocapitalismo chinês. Um sistema montado no estímulo à máxima produtividade, à obediência absoluta e à aparência de sucesso.

A diretora Jessica Kingdon nasceu nos EUA, filha de pai judeu estadunidense e mãe chinesa. Ela abre e fecha este seu primeiro longa-metragem (depois de três curtas sobre trabalho e lazer na China) com versos do seu avô materno sobre alguém que ascende a uma torre cujo topo é inatingível enquanto suas atribulações só fazem aumentar no caminho. É o comentário da diretora sobre a febre produtivista e consumista que assola a China contemporânea.

Boa parte do documentário se passa dentro de fábricas, onde os Tempos Modernos de Chaplin são elevados à enésima potência. Tudo é muito e grande. As linhas de montagem condicionam os operários ao ritmo incessante das máquinas numa escala gigantesca. Numa fábrica de bonecas eróticas (geralmente de traços ocidentais e peitos voluptuosos), mulheres se ocupam de esculpir e colorir adequadamente mamilos e vaginas.

A já conhecida militarização dos rituais de funcionários tem exemplos de cair o queixo. Num treinamento de seguranças, um mero descuido do aluno pode lhe render chutes e castigos corporais do instrutor. Em cenas como essa, vem à tona uma violência que, adivinha-se, subsiste recalcada por baixo de toda a ideologia de meritocracia e servidão coletiva.

Desfrutando de um invejável acesso a plantas industriais, centros de reciclagem, escolas profissionalizantes e reuniões mais ou menos íntimas – como o jantar “europeu” de um grupo de ricaços – Ascension certamente quer dizer algo sobre a guerra comercial entre China e EUA. Em evento espalhafatoso, o CEO de uma grande empresa anuncia para breve a completa vitória chinesa sobre o concorrente ocidental.

Enquanto isso, operárias procuram caprichar na finalização de produtos a serem vendidos justamente aos EUA, incluindo suéteres bordados eletronicamente com os dizeres “Make America Great“. A escravidão sorridente (ao menos na superfície) chinesa já era colocada em paralelo com as liberdades democráticas estadunidenses em Indústria Americana, vencedor do Oscar de documentário em 2020.

Em sua grande colagem de vinhetas, Jessica Kingdon aborda também o estímulo aos pequenos negócios, promovidos no miúdo por seus proprietários nas redes sociais. Tudo se passa diante das câmeras de celulares – da divulgação de uma maquiagem para selfies ao controle da ordem nos treinamentos militarizados.

Um bloco do filme é dedicado aos centros de lazer, onde multidões expandem freneticamente sua felicidade nos dias de folga. Também a diversão é altamente industrial e maquinal, em cadência muito distante das tradições culturais da Velha China.

Depois de mostrar um carrossel de imagens estonteantes e situações escorchantes da China urbana e moderna, Jessica conclui o filme com tomadas de gente simples do campo, como a indicar que, no fim das contas, o topo da torre nunca será alcançado. Enquanto o pensamento empresarial promete um sonho chinês no horizonte, as desigualdades sociais só fazem aumentar, como o filme sutilmente demonstra nas entrelinhas de muitas imagens.

Trailer legendado em inglês:

5 comentários sobre “Documentários indicados ao Oscar: “Ascension”

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