OTTO: DE TRÁS PARA DIANTE + BROKER + A MENINA SILENCIOSA
Otto: de Trás para Diante
Nem bonitinho, nem ordinário
Com seu humor bem mineiro, Otto Lara Resende certamente adoraria ser chamado de palíndromo. A palavra Otto tem a mesma leitura de trás para diante. Nelson Rodrigues preferiu associar seu nome ao título da peça Bonitinha mas Ordinária. Imagino quantas brincadeiras rolavam entre ele e a turma com quem conviveu entre os anos 1950 e 1980, no auge de sua carreira. Pelo documentário biográfico realizado por sua filha, Helena Lara Resende, e Marcos Ribeiro desfilam nada menos que Mário de Andrade, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, Carlos Drummond de Andrade, Helio Peregrino, Tristão de Athayde e Nelson Rodrigues.
Naquele tempo, a crônica era a cereja do bolo do jornalismo. Os textos tinham verve literária e um fair play que pouco se vê hoje em dia. O sistema de produção também era muito diferente. Otto, por exemplo, escrevia para vários jornais em simultaneidade. Por algum tempo, chegou a ser editorialista de O Globo e do Diário de Notícias ao mesmo tempo, sendo que polemizava consigo mesmo escrevendo opiniões opostas segundo a linha editorial de cada um dos veículos.
Otto: de Trás para Diante utiliza cinco estratagemas para sintetizar a trajetória do escritor pelo jornalismo, a televisão e os cargos de “adido e mal pago” na Europa (a expressão é dele). O próprio Otto aparece em entrevista informal a um programa de TV. Heleninha e sua mãe, também Helena, exumam recordações a partir de cartas e anotações familiares. Humberto Werneck traz observações sobre o trabalho de Otto, exibindo inclusive o datiloscrito de um livro seu com extensivas intervenções de Otto como copydesk rigoroso. A atriz Julia Lemmertz lê trechos de livros de Otto e o ator Rodolfo Vaz (ex-Grupo Galpão) interpreta, não sem certa picardia, o autor à máquina de escrever.
Entre os dados importantes da biografia, fica jogado no ar o episódio de um assalto, ao qual Otto teria reagido com um tiro. O relato é interrompido por um corte brusco, deixando o espectador pendurado num ponto de interrogação. Mas o documentário destaca também os sinais de uma personalidade marcante na cena jornalística de então. Otto parecia feliz ao se dizer infeliz. Escrever, para ele, era uma tortura e ao mesmo tempo uma salvação. O que transpira para nós é o espírito de uma época em que Minas e Rio de Janeiro enchiam de graça a cultura brasileira.
Broker
Filhos do abandono
Em seu primeiro filme fora do Japão, Hirokazu Kore-eda permanece fiel a um de seus temas mais frequentes, qual sejam as estranhas formas que podem assumir os núcleos familiares por causa de abandono, adoção ou eventos fortuitos. Filmando na Coreia com elenco coreano liderado por Song Kang-ho, o astro de Parasita, o diretor envereda por uma trama exageradamente sinuosa.
Dois amigos costumam roubar bebês deixados na caixa coletora de uma igreja para vender no mercado negro de adoções. A rotina deles vai ser abalada por uma jovem mãe que está sendo seguida por duas policiais na investigação de um crime. Esse esboço de thriller é atravessado pela costumeira abordagem doce-amarga de Kore-eda em relação aos laços de afeto. Aos poucos, o que começa como um encontro de dois bandidos e uma prostituta, a par da dificuldade em vender o bebê, evolui para a formação de uma espécie de família.
Trata-se de uma história de gente abandonada desde sempre e que procura apoio e vantagens nas margens da sociedade. Kore-eda pinta retratos humanos ambíguos, que infringem a lei mas lidam corretamente, e até com certa ingenuidade, no plano dos relacionamentos. Não falta algum humor incômodo, como na cena em que um casal tenta baixar o preço de compra do bebê porque o achou mais feio do que na foto enviada previamente.
Mas é também forçoso reconhecer que Broker (corretor em inglês) não está entre os melhores filmes do autor de Ninguém Pode Saber, Pais e Filhos e Assunto de Família. O enredo enfeixa várias subtramas que se desenrolam precariamente e criam “barrigas”, alongando a duração para um pouco mais de duas horas. Ao contrário dos seus filmes mais bem sucedidos, Kore-eda tampouco consegue criar uma química produtiva entre os personagens, nem clarear as motivações de alguns deles, em especial da policial menos jovem.
Não sei dizer se o fato de lidar com a cultura coreana teria influenciado negativamente a performance de um cineasta profundamente identificado com o Japão.
A Menina Silenciosa
Quase um conto de fadas
A primeira cena de A Menina Silenciosa (An Cailín Ciúin) me lembrou o famoso quadro Christina’s World, de Andrew Wyeth. Uma garota se ergue aos poucos da relva onde se escondia dos chamados de casa distante. Mas, ao contrário da personagem da pintura, Cáit (Catherine Clinch) não tem uma deficiência física, mas sim um déficit emocional. Retraída, move-se o mínimo possível, tem dificuldades para aprender a ler, sofre bullying e é tratada como lixo pelos pais pobres na Irlanda rural de 1981. Quase uma figura de conto de fadas.
Durante as férias de verão, os pais a despacham para a casa de um casal, parentes distantes da mãe, a fim de ter menos despesa em casa enquanto esperam um novo filho. “Ela come a despensa inteira”, reclama o pai.
Na casa de Eibhlín (Carrie Crowley) e Seán (Andrew Bennett), Cáitl encontrará atenção e cuidado, ainda que dentro dos padrões secos e duros da Irlanda profunda. Ali a menina sairá um pouco do seu casulo, mesmo que custe a descobrir (e nós também) a função que sua presença assumia naquela casa.
O filme de Colm Bairéad, adaptado de um conto de Claire Keegan, é pequeno na estatura, oferece mais expectativas do que substância dramática, mas tem uma condução tão suave e enredante que pode nos cativar plenamente. São muitos os detalhes a nos envolver nas sutilezas das relações entre Cáitl e suas duas “famílias”. A aparente sisudez de Seán, por exemplo, que ocultava uma ternura reprimida; a afabilidade permanente de Eibhlín a dissimular a sombra de um trauma; a inocência de Cáitl exposta em suas respostas prosaicas às questões mais graves. Um mundo de pequenas nuances para quem as aprecia.
Colm Bairéad adota um ritmo compassado e sedoso, pontuado por algumas belas simultaneidades temporais. Seu estilo me trouxe à memória ora os retratos familiares melancólicos de Terence Davies, ora a fabulação de Céline Sciamma em Pequena Mamãe. Mesmo assim, trata-se de uma obra singular em sua capacidade de nos tocar intimamente, assim como no uso do idioma irlandês (o gaélico) nos diálogos. É o filme indicado pela Irlanda para concorrer ao Oscar depois de premiado nacionalmente e no Festival de Berlim.
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