Festival do Rio 8/10

NÃO É A PRIMEIRA VEZ QUE LUTAMOS PELO NOSSO AMOR + NOTRE-DAME: DESASTRE EM PARIS 

BELCHIOR – APENAS UM CORAÇÃO SELVAGEM, de Natália Dias e Camilo Cavalcanti

Não é a Primeira Vez que Lutamos pelo Nosso Amor

O brilho dos vagalumes

Em 2018, no momento em que o governo fascista de Jair Bolsonaro assumia as rédeas da regressão nacional, Luís Carlos Alencar e a produtora Couro de Rato começavam a gestar esse antídoto. As primeiras imagens mostram Renato Borghi como O Rei da Vela pontificando justamente o retrocesso machocapitalista da ditadura de 1964. A partir desse recuo entre dois tempos semelhantes, o documentário Não é a Primeira Vez que Lutamos pelo Nosso Amor vai em busca dos grandes atos de resistência de gays, lésbicas e travestis durante o regime militar.

As Marchas com Deus pela Família e pela Liberdade não pediam apenas a mudança do regime. Ali estava embutida toda uma pauta conservadora que apontava como desvio punível qualquer comportamento fora dos padrões burgueses e judaico-cristãos. Os governos militares apertaram o cerco contra o homossexualismo e o transexualismo, classificando-os como análogos ao comunismo, ao alcoolismo e ao consumo de drogas. Delegados se notabilizaram pela brutalidade com que tratavam suas vítimas em operações de “limpeza” no Rio e São Paulo.

O filme recolhe os testemunhos de diversos ativistas, artistas e pessoas comuns sobre o cotidiano de gays e lésbicas em tempos de repressão, confinados em bares, boates, saunas, banheiros e parques onde podiam dar vazão a seus desejos. A resposta policial era violenta, principalmente sobre os travestis, mas também sobre todo grupo de homossexuais que ousassem botar a cara no mundo ou tentar algum tipo de organização. O multicriador João Silvério Trevisan é um dos mais destacados com sua militância pioneira e as conexões que estabeleceu no exílio com grupos estadunidenses. As lutas dos gays nos EUA, especialmente depois das rebeliões de Stonewall, inspiraram muita coisa por aqui, e essa é uma história que precisava mesmo ser contada.

Alencar saiu em campo e trouxe considerações preciosas de ícones do front LGBT nos EUA, Argentina, Bahia, Rio, São Paulo e Minas Gerais. Relatos de perseguição, prisões, torturas e deboches do então chamado Terceiro Sexo (ou vulgarmente “bonecas”, “enxutos”) dão conta de como o poder exercia sua política de controle moral sobre os corpos, as subjetividades e os desejos das pessoas.

Essa é também uma história de resistência, medo e coragem misturados. Um levantamento inestimável de imagens, documentos e depoimentos recupera as primeiras iniciativas de organização dos homossexuais brasileiros nos anos 1960, em geral reprimidas pela polícia. Os enfrentamentos recorriam a estratégias como a mídia alternativa com o célebre jornal Lampião, reuniões no âmbito universitário e eventuais passeatas já nos anos 1970.

O poeta Glauco Mattoso, o brasilianista James Green e a historiadora Marisa Fernandes, entre outros, relembram a trajetória do Somos – Grupo de Afirmação Homossexual. Além da militância gay, os integrantes do Somos aboliram o formato casal e praticavam o pluriamor em busca de um pleno autoconhecimento grupal. Como lema, “galinhagem ampla, geral e irrestrita”, parafraseando o slogan da apregoada “abertura” política.

Capítulo importante dessa memória são as relações intra e extra-grupos. Em meio aos ideais de solidariedade surgiam também as dissensões e os rachas. Atitudes consideradas machistas fizeram com que um subgrupo de lésbicas abandonassem o Somos e fundassem o Éramos, oficialmente denominado GALF – Grupo de Ação Lésbico-Feminista. Ali editariam a memorável revista Chana com Chana. Por outro lado, os vínculos dos LGBT com feministas, anarquistas e o Movimento Negro Unificado foram fator de empoderamento, mas também deram margem à eclosão de preconceitos recíprocos e a reivindicações de autonomia.

Não há qualquer intenção de pintar o movimento como um mar de rosas. Nesse ponto, o filme é de uma notável honestidade política. Basta ver a forma como Alencar aborda a grande celeuma do 1º de Maio de 1980, quando parte do Grupo Somos decidiu integrar-se aos protestos dos metalúrgicos em greve no ABC paulista. O alinhamento com a classe operária e a Convergência Socialista foi objeto de debates fervorosos e divergências incontornáveis.

A pesquisa laboriosa de fotografias, cenas de arquivo e documentos chega às telas num formato ágil e instigante a par de uma intervenção vigorosa nas imagens. Recortes, movimentos e texturas “aquecem” a visualidade do filme e se harmonizam com a intensidade e ocasionalmente o humor das falas.

Essa crônica de um tempo escuro vai se concluir com o advento da Aids, que desarticulou em grande medida os movimentos. Mas não sem antes a vitória de retirar do código de Saúde a caracterização do homossexualismo como uma enfermidade. A doença de verdade viria a partir de 2018. Era tempo de redobrar os ânimos e trabalhar em cima das conquistas anteriores. Era hora de, mais que nunca, ecoar o que diz Trevisan: “Nós somos vagalumes. Nosso desejo brilha”.

Notre-Dame: Desastre em Paris

Inferno na igreja

O filme-catástrofe está de volta, e não é pela sua matriz estadunidense. Notre-Dame: Desastre em Paris (Notre-Dame Brûle) aperta todos os botões do gênero para dar uma ideia dramatizada do que foi o incêndio da catedral parisiense em 15 de abril de 2019. Lá estão os pequenos dramas individuais, a Lei de Murphy que faz tudo parecer conspirar a favor do fogo, as iniciativas heroicas, o suspense a cada etapa da ação.

O fato de o fogo se espalhar pelo telhado e a agulha da igreja dificultou enormemente o acesso dos bombeiros pelas escadas estreitas em espiral, as portas trancadas, a falta de pressão da água para alcançar os focos de chamas. Para que o filme-catástrofe surta seu efeito, todas as dificuldades são ressaltadas – do alarme dado como falso ao trânsito que atrasa a chegada dos bombeiros. Detalhes quase mórbidos entram na conta, como é o caso da tomada inicial de um fósforo inocente sendo aceso ou da discussão sobre qual o elemento mais destrutivo entre a água e o fogo.

O diretor Jean-Jacques Annaud (Preto e Branco em Cores, A Guerra do Fogo, O Urso, O Nome da Rosa) retorna de um período relativamente obscuro com esta superprodução rica em efeitos especiais e em ressonâncias religiosas. Além do funcionário imigrante africano que aciona o primeiro alarme e do simples sargento que propõe o plano decisivo de salvação da estrutura da catedral, é reservado espaço para uma menina que insiste em acender uma vela durante a evacuação da igreja. As sequências finais ganham foro de espetáculo místico, com a trilha musical de Simon Franglen associando-se ao canto das pessoas diante da Notre-Dame. Há mesmo a sugestão de uma lágrima na imagem de uma Virgem de pedra. Boa parte da expectativa se prende ao resgate de relíquias cristãs, entre elas a coroa de espinhos que teria cingido a cabeça de Jesus.

A produção articula muito bem as cenas de reconstituição com imagens reais do incêndio e exibe o luxo de ter a prefeita de Paris, Anne Hidalgo, interpretando a si própria numa rápida cena em seu gabinete. O presidente Macron também aparece em cenas documentais feitas pela equipe do governo no local e no dia do desastre.

Notre-Dame: Desastre em Paris  foi filmado para o IMAX, onde deve resultar particularmente efetivo. O acontecimento já foi objeto do documentário La Bataille de Notre-Dame (2019) e da série ficcional Notre-Dame – Catedral em Chamas, disponível na Netflix.

Um comentário sobre “Festival do Rio 8/10

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