Festival do Rio 10/10

PALOMA + NOITES DE PARIS

Paloma

A sereia que queria casar

Paloma nos coloca uma questão que os primeiros filmes a normalizarem a vida LGBT já colocavam: até que ponto uma história de fundo conservador pode se tornar transgressora pelo simples fato de seus personagens não serem heteronormativos?

No filme de Marcelo Gomes, baseado na história real de Paloma Silva, a personagem-título é uma mulher trans do interior de Pernambuco, agricultora e analfabeta, cujo desejo maior é casar na igreja com seu namorado, o pedreiro Zé, com as bênçãos do Senhor. Mais que isso, Paloma parece completamente fascinada pelos rituais do casório, os vestidos de noiva, o olhar nos olhos do padre.

Num paralelo possível com a trama de O Pagador de Promessas, a igreja se recusa a celebrar o matrimônio. Paloma, porém, não desiste. Faz romaria ao Padre Cícero, escreve ao Papa, investiga uma alternativa menos ortodoxa, demove as hesitações do futuro marido. Tudo em busca do sonho de ser “a mulher mais feliz do sertão”.

O casal já vive junto, criando uma filha de Paloma (cuja história vamos conhecer no último ato) e isolado numa bolha alheia à realidade em volta. A verdade é que, afora algumas amigas de Paloma, a população local pratica a transfobia seja aos cochichos, seja pela extrema violência. Para isso atingir a felicidade do casal, será apenas uma questão de tempo.

Paloma quer uma vida livre – inclusive sexualmente –, mas isso não a impede de aspirar ao figurino mais retrógrado. De certa forma, essa aparente contradição alimenta o filme e lhe confere um certo gume. O que pode até ser tolerado a nível de transgressão não pode ser aceito ao passar por uma sacramentação na ordem sócio-religiosa.

A atriz Kika Sena tem uma performance bastante convincente na mescla de ternura e fibra dessa mulher fantástica (para me referir ao filme de Sebastián Lelio, com o qual Paloma guarda semelhanças longínquas). A boa medida de sua atuação resgata o drama de uma tendência a ser às vezes novelesco, com diálogos muito funcionais e lugares-comuns como a chuva que cai na hora adequada para aliviar a dor da personagem. Vejo também a curva dramática de Zé soar um tanto inverossímil, dada a sua coragem de topar a união clara com Paloma e a menina.

O filme é muito bem cuidado no trato com as cores, no trabalho geral do elenco preparado por Silvia Lourenço e na inserção de canções do sertanejo romântico, além da certeira Sem Pecado e Sem Juízo, de Baby do Brasil e Pepeu Gomes.

Uma imagem marcante faz de Paloma uma sereia de areia. O ser híbrido atiça imaginações e ao mesmo tempo se torna difícil de assimilar. Especialmente num Brasil cujo mar não está para esse tipo de peixe.

Noites de Paris

Uma Paris em banho-maria

A Paris da era Mitterrand, anos 1980, ressurge com ar melancólico em Noites de Paris. A melancolia vem principalmente da personagem central, interpretada com muita delicadeza por Charlotte Gainsbourg. Ela é Elisabeth, recém-abandonada pelo marido e sobrevivente de câncer no seio, que cuida dos dois filhos pós-adolescentes e trabalha em jornada dupla numa biblioteca e num programa noturno de rádio. O programa, chamado Les Passagers de la Nuit (título original do filme), transmite histórias de pessoas comuns. Elisabeth vai experimentar uma dessas histórias em sua própria casa ao acolher a frágil Talulah (a gracinha Noée Abita), uma menina que vive na rua.

Algumas linhas de expectativa se abrem desde o início: como Elisabeth vai dar conta de uma vida profissional para a qual não tem nenhuma experiência? Encontrará ela um novo amor? Qual o efeito que Talulah vai causar no ambiente familiar? Qual o segredo de Talulah, afinal?

Para cada uma dessas perguntas, o filme de Mikhaël Hers vai oferecer uma meia resposta – todas elas, infelizmente, decepcionantes. Nenhum conflito real, nenhuma interação consistente se estabelecerá. O filme seguirá morno até simplesmente ser interrompido por um final anódino. Os personagens são equivalentes em sua amabilidade, mas desprovidos de curvas dramáticas que digam a que vieram. Tive a impressão de que Noites de Paris é composto mais de cenas de passagem (imagens de arquivo da cidade, deslocamentos, ociosidade, contemplações, etc) que de sequências substantivas. Saí do filme como quem passou 111 minutos olhando uma paisagem humana simpática e doce, mas irrelevante.

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