Botando a conversa em dia

Findo o recesso do blog, publico aqui alguns pequenos comentários que postei recentemente no Facebook.

TILL – A BUSCA POR JUSTIÇA (Till) é uma reconstituição do linchamento e assassinato do adolescente negro Emmett Till por ter feito fiu-fiu para uma mulher branca no Mississippi em 1955. Assim como da luta inglória de sua mãe, Mamie Till, para punir os culpados.

Um docudrama de formato clássico que alguns consideram esnobado pelo Oscar. Concordo em pelo menos uma categoria: Danielle Deadwyler está mais merecedora que as Michelles Yeoh e Williams. A exclusão de Danielle e Viola Davis gerou até novos protestos contra discriminação racial na Academia (#OscarsSoWhite).

TILL é eficaz ao dimensionar a segregação racial e os dilemas dos negros entre a coragem de denunciar e o medo de morrer antes da conquista de seus direitos civis. Mas se tem uma coisa nesse tipo de produção que me incomoda tremendamente é a sanitização dos personagens já a partir de sua caracterização física. Assim como os automóveis brilhando de novos, ninguém está mal vestido, não há roupas vincadas ou gastas pelo uso, nenhuma mulher aparece sem maquiagem e acessórios impecáveis. Isso, naturalmente, se reflete no comportamento imaculado de heróis e vítimas.

Mais do que história, esses filmes constroem versões esterilizadas de fatos.

>> TILL está nos cinemas.


Uma grande celeuma cercou a indicação de Andrea Riseborough ao Oscar de melhor atriz pelo drama TO LESLIE. A produção (da qual faz parte a própria Andrea como produtora executiva) usou na campanha recursos de redes sociais incompatíveis com as regras da Academia. Mesmo assim, foi indicada. Mas, em matéria de qualidade de atuação, não vejo nenhum demérito, muito pelo contrário. A composição da moça no papel de uma mãe solteira que esbanja rapidamente a grana de um prêmio de loteria e acaba na sarjeta, alcoólatra e rejeitada por todos, é simplesmente magistral. Um modelo de interpretação radical, de corpo inteiro, que pontua cada reação e emoção desencontrada da personagem

É uma história de redenção, um tanto facilitada pelo surgimento de uma espécie de anjo no caminho de Leslie e pela ênfase no potencial de perdão que reside por trás de todo ressentimento. Um feel good movie, afinal de contas, depois de nos castigar um tanto com as fraquezas e desacertos da protagonista. Por mais que aquele realismo possa parecer convencional, o filme nos conquista pela imprevisibilidade dos passos de Leslie e pelo cuidado que nos surpreendemos tendo com ela. E para isso a performance intensa de Andrea é o veículo perfeito. Se tivesse que votar no Oscar, eu ficaria muito indeciso entre ela e Cate Blanchett por TAR.

>> TO LESLIE ainda não está em cartaz no Brasil


Depois de uma tentativa frustrada, na qual desisti a cerca de 30 minutos de filme, resolvi hoje me arriscar novamente com TUDO EM TODO LUGAR AO MESMO TEMPO (Everything Everywhere All at Once). Afinal, é o recordista com 11 indicações ao Oscar e 10 ao Bafta. Alguma coisa isso quer dizer sobre o estado da indústria do cinema de língua inglesa.

Dessa vez fui até o fim. Parece que levei uma surra. E cheguei à conclusão de que o estado da indústria do cinema de língua inglesa não é dos melhores. Se é para aplicar tanta técnica e pegar carona na física quântica e na teoria do multiverso para produzir tamanha estultice, melhor que nem a técnica nem a ciência tivessem evoluído. As possíveis realidades alternativas servem apenas como combustível para porradarias sem fim, num vale-tudo que sabota o que o próprio filme pretendia dizer.

Citações a Kubrick, Wong Kar Wai, Tarantino, Ang Lee, etc se acumulam numa histeria sem rumo (ou com vários rumos, pela suposta lógica do filme), como um game onde outras pessoas jogassem por nós, à nossa revelia. Tudo para desaguar numa mensagem cafona sobre união familiar.

Gosto do apelido que o filme ganhou: Nada em lugar nenhum em tempo algum. Um nada exaustivo, uma façanha fajuta.

>> TUDO EM TODO LUGAR AO MESMO TEMPO está nas plataformas Google Play, Amazon, Youtube Movies, Claro e AppleTV.


 

ESCOLA BASE e a má consciência jornalística

ESCOLA BASE: UM REPÓRTER ENFRENTA O PASSADO, documentário de Caio Cavecchini, é não só o exame de consciência de um repórter, Valmir Salaro, mas de toda a mídia que costuma propagar denúncias sem provas para fazer sensacionalismo. O jornalismo político tem sido pródigo nessa prática – e a Lava Jato é um exemplo vistoso de danos causados ao país.

Mas ESCOLA BASE trata de um tema policial: as acusações de abuso sexual, uso de drogas e torturas contra crianças que pesaram contra uma pequena escola paulista de classe média em 1994. O estabelecimento e as casas de seus proprietários foram depredados, pessoas foram estigmatizadas e vidas foram terrivelmente prejudicadas por causa de denúncias fantasiosas, laudos errados e a atuação de um delegado irresponsável. A Escola Base passava a ser conhecida como “a escolinha do sexo”.

Valmir Salaro, o repórter da Globo que primeiro publicou as acusações, se lança agora num mea culpa (bastante tardio, por sinal) e se dispõe a encarar “suas” vítimas pela primeira vez para pedir perdão. Na época, sua reportagem disparou um rastilho de pólvora que incendiou reputações e destruiu sonhos. Apenas meses depois, a inocência dos envolvidos ficaria comprovada.

O filme tem um belo roteiro em parte investigativo, em parte de recomposição moral, em moldes que o documentarismo estadunidense faz muito bem. E traz a revelação – aparentemente inédita – de que os donos da Escola Base foram torturados pela polícia durante as investigações.

Jornalista que confia demais em depoimentos individuais e em perícias duvidosas corre o risco de errar desastrosamente. Valmir Salaro teve a coragem de expor sua responsabilidade, protagonizando um drama documental de primeira grandeza.

>> ESCOLA BASE está na Globoplay.


DEUS TEM AIDS chegou ao streaming na plataforma Mubi. Os diretores/produtores Gustavo Vinagre e Fábio Leal reúnem no documentário oito pessoas portadoras de HIV que metabolizam sua soropositividade em obras de arte: performances de rua, dança, poesia, teatro, pintura. A ideia que prevalece nesses discursos artísticos é desafiar os estereótipos, a ideia de morte certa, a sorofobia – sintomas que muitas vezes vêm se somar ao racismo e à homofobia no meio social.

Fala-se de estigma, de sobrevivência e das mudanças de percepção do mundo que podem advir com a doença. Um dos personagens se dedica a puxar conversas de esclarecimento na rua sobre HIV e Aids. Outro provoca o mal estar do seu público com uma performance algo masoquista envolvendo o seu próprio sangue. Outro ainda questiona o vocabulário usado nas referências à soropositividade (“como assim positivo?”).

Não há como negar a impressão de que já vimos esse filme disperso em vários outros filmes nas últimas duas décadas. No entanto, ele ainda soa oportuno diante do fato de que mais de 10 mil pessoas ainda morrem de Aids por ano no Brasil.

DEUS TEM AIDS é às vezes muito cru esteticamente e também como depoimento sobre a questão. As tentativas de acessar a complexidade do assunto nem sempre dão bom resultado. Até porque faltam força e originalidade a boa parte das performances que buscam instrumentalizar os corpos na luta contra a sorofobia.

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