ÉTV: Gigante

No Livro de Jó, Behemoth é um monstro do deserto, nome que se tornaria metáfora de alguma entidade gigantesca e poderosa. Na Divina Comédia, Dante e seu guia Virgílio percorrem o inferno, o purgatório e o paraíso. Essas duas referências servem de parâmetro para Zhao Liang elaborar sua meditação poética em torno do sofrimento da terra e dos homens nas minas de carvão e nas fundições siderúrgicas da Mongólia. Gigante (Behemoth) ganhou prêmios paralelos em Veneza e foi eleito melhor documentário dos festivais de Estocolmo e Hong Kong.

O filme impressiona primeiramente pela grandiosidade infernal de suas imagens. Nas planícies da Mongólia, os pastos verdejantes vão sendo rapidamente substituídos por imensos canteiros de mineração, uma paisagem realmente dantesca, em que montanhas são explodidas, máquinas desventram o solo e hordas de caminhões transportam os subprodutos da destruição. Vez por outra, o diretor marca seu ponto de vista literatizante por meio de textos inspirados em Dante, imagens de um homem nu dormindo na terra nua ou reflexos produzidos por espelhos físicos ou virtuais. Mas não é nessas intervenções um tanto retóricas que reside a força do filme, e sim na frontalidade com que Liang encara o seu cenário.

Mais adiante, quando passamos aos salões de fogo das fundições, as figuras dos trabalhadores vão ocupando espaço crescente. O que se destaca, então, é o silêncio daquela “multidão passiva” (como diz o texto). Homens e mulheres labutam ensimesmados, como se não houvesse realidade alternativa ao trabalho duro. Igualmente árdua é a tarefa de limpar o corpo depois da jornada nas minas ou nas fundições. Liang completa, enfim, sua passagem dos amplíssimos planos gerais aos closes fechados de rostos cobertos de suor e fuligem, mãos horrivelmente calejadas, olhos injetados, enfermos de pulmões encardidos em leitos de hospital.

O paraíso é referido de maneira irônica com uma das muitas cidades fantasmas da China, onde tudo é limpo e ermo ao redor da miríade de torres de apartamentos desocupadas. Seria esse paraíso deserto o destino de todo o sacrifício dos mineiros e metalúrgicos?

Talvez se possa dizer que Zhao Liang procura mais o impacto visual e sonoro do que propriamente a explicitação de uma denúncia. É uma fronteira difícil de estabelecer quando não se é um Werner Herzog, que sabe conciliar isso muito bem. Behemoth se insere numa linha de documentários críticos da industrialização asiática, junto com Wang Bing e Jia Zhang-ke. Observação crua e intervenção performática procuram somar-se para eliminar a interação com os personagens. O silêncio dos trabalhadores é uma expressão de seu modo de vida, mas ao mesmo tempo é resultado de sua exclusão como indivíduos, do sistema e do filme.

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