A partir desta quinta, 15, o Instituto Moreira Salles traz para o Rio a mostra Hollywood e Além: O Cinema Investigativo de Thom Andersen. Volto a publicar o texto que fiz para a versão paulista da mostra:
Depois de Heinz Emigholz e Kira Muratova, esta é mais uma significativa contribuição do curador Aaron Cutler (aqui junto a Mariana Shellard) à diversificação da dieta cinematográfica paulistana. Contam-se nos dedos de poucas mãos os brasileiros que conhecem a obra desse mestre de Los Angeles. Mas um de seus filmes, pelo menos, está no topo da estima crítica internacional, o premiado Los Angeles Plays Itself (Los Angeles por Ela Mesma, 2003).
Professor de cinema no CalArts (California Institute of the Arts), Thom Andersen faz de alguns de seus filmes extensões de suas aulas ilustradas. São em geral filmes-ensaio do modo que Timothy Corrigan classificou como “refrativos”, ou seja, os que põem em questão o próprio acervo do cinema. Em cada filme, prepondera uma faceta do seu trabalho, sempre combinada com outras: o professor, o crítico, o pesquisador e o documentarista experimental.
Los Angeles Plays Itself, por exemplo, é um filme de crítico-ensaísta. Em contagiantes 170 minutos, Andersen compila cenas de mais de 100 filmes rodados em L.A. (ele detesta essa abreviação) e expõe o nervo da relação entre o cinema e a cidade. L.A. aparece como cenário (inclusive de lugares distantes como a China), como personagem e como tema. Uma narração bastante pessoal soa às vezes mordaz, às vezes nostálgica, mas sempre apaixonada pela cidade natal do autor (“a Calçada da Fama/Fame deveria se chamar Calçada da Vergonha/Shame“). Em certos momentos, chega a ser implicante, como ao “denunciar” as licenças geográficas e lamentar que algumas construções venerandas tenham sido vilipendiadas por aparecerem na tela como valhacoutos de bandidos e mafiosos.
O filme inventaria prédios célebres e seus diversos usos nos filmes, revisita ícones arquitetônicos hoje desaparecidos e explora locações famosas num misto de fascinação e crítica da mercantilização de Hollywood e, por extensão, do capitalismo de consumo. O cinema, afirma Andersen, mente sobre a cidade e sobre a condição social de seus moradores. Daí que ele conclua a compilação com os filmes dos “pedestres” – os pobres, latinos e negros que habitaram os antípodas de Beverly Hills e injetaram realismo no cinema made in L.A. Em última análise, Andersen quer resgatar dos filmes (mesmo os de ficção) a sua dimensão documental. Chinatown e Uma Cilada para Roger Rabbit, por exemplo, contariam histórias secretas da cidade em suas entrelinhas.
Para Andersen, L.A. foi filmada por locais e por “turistas”. Estes se dividiriam entre os turistas highbrow (Warhol, Maya Deren, Antonioni, Demy) e turistas lowbrow (Woody Allen, Hitchcock), com cada tipo produzindo imagens favoráveis ou não da cidade. Blade Runner, com seu futurismo distópico, seria “o pesadelo oficial de Los Angeles”. Ensaio ao mesmo tempo complexo e comunicativo, ácido e divertido, Los Angeles por Ela Mesma se apresenta como “uma sinfonia de cidade invertida”.
Andersen gosta de sinfonias de cidades. O média-metragem Get Out of the Car (2010) também carrega essa epígrafe, mas se limita a mostrar outdoors rasgados, placas apagadas, fachadas decoradas, graffitis, pinturas murais e letreiros de neon, sem a inserção de nenhuma figura humana. “Um filme sobre a ausência”, diz ele. Los Angeles posaria de cidade fantasma se não fossem curtos fragmentos de conversas que surgem no áudio esporadicamente. O título Get Out of the Car sugere planos filmados pelo diretor depois de parar o carro em algum ponto de rua ou estrada. Na faixa sonora, poucas falas, ruídos ambientais e uma seleção de trechos de músicas “de Los Angeles”.
Embora seja composto por imagens filmadas pelo próprio Andersen, Get out of the Car não deixa de ser mais um filme de compilação. Nesse caso revela-se o documentarista experimental. Foi assim no início de sua carreira, com o curta The Rock ‘n’ Roll Movie (1967), feito em parceria com o editor de som Malcolm Brodwick. Aqui a ideia era montar um doc musical a partir da forma, e não do tema. Assim, a proeminência do ritmo e da indisciplina, típicos do rock, contagiam a estrutura do filme. Planos soltos, geralmente ligados à música e à indústria musical, foram justapostos ao acaso com uma colagem de músicas (não apenas rock). Saem a informação e a coerência, restam o movimento e as surpresas. That’s rock ‘n’ roll, folks!
Do rock à resistência, Andersen juntou-se ao teórico e cineasta Noël Burch para fazer Red Hollywood (1996), outra compilação reunindo dezenas de excertos de filmes escritos e/ou dirigidos por integrantes da lista negra do macarthismo. Comentado por alguns sobreviventes, o período da fúria anticomunista em Hollywood ressurgiu nesse doc como um momento de exceção na produção cinematográfica americana. Os filmes lidavam com temas como exploração capitalista, ativismo trabalhista, solidariedade de classe, iniciativas comunitárias, greves, desemprego, crimes com causas sociais, protagonismo feminino, denúncias pioneiras do Holocausto, racismo, xenofobia… E, naturalmente, delação.
Em Red Hollywood prevalece o Thom Andersen professor, com a ligeira desvantagem de uma locução soporífera a cargo de Billy Woodberry. A “aula” abrange geopolítica e relações entre sexo, cinema e capital. A certa altura, o diretor Abraham Polonsky afirma que “todo filme criminal é sobre o capitalismo, pois o capitalismo é o crime”. A simpatia pela esquerda, contudo, não impede Andersen e Burch de mencionar ingenuidades e encobrimentos dos “vermelhos”, assim como a eventual falta de talento para inserir suas mensagens. Algumas argumentações da narração soam confusas na relação com as cenas que as ilustram, mas a importância de Red Hollywood é enorme por articular aquele acervo de imagens com um discurso histórico revelador. Muitos filmes obscuros vêm à tona para despertar nossa curiosidade, o que já é um grande serviço.
Da obscuridade é retirado também o ator Tony Longo, que fez pontas em mais de 100 filmes de ação hollywoodianos. No curta The Tony Longo Trilogy (2014), Andersen reúne as aparições do brutamontes em três de seus filmes e monta uma espécie de história trágica de seus personagens. O coadjuvante vira protagonista. É a faceta do cineasta pesquisador, mergulhado nos mitos (grandes e pequenos) do cinema americano.
O longa mais recente de Thom Andersen é The Thoughts That Once We Had (Os Pensamentos que Outrora Tivemos, 2015), que abre a mostra seguido de um debate com os curadores e o pesquisador Lucas Murari. Este é talvez o seu trabalho teoricamente mais ambicioso. Um filme de acadêmico. Pretende ilustrar conceitos de Georges Deleuze (dos livros Imagem-Movimento e Imagem-Tempo) através de cenas de filmes de várias épocas e procedências. Até Carmen Miranda dá as caras como “a estrela favorita de Wittgenstein”. O filme combina seriedade filosófica com pitadas de ironia e reminiscências pessoais para falar dos afetos e das relações mentais que estabelecemos através do cinema. Os conceitos deleuzianos de “imagem-afecção”, “imagem-ação”, “imagem-percepção”, “enquadramento afetivo” e “a pequena diferença que faz a grande diferença”, entre outros, se fazem traduzir por cenas impregnantes, numa colagem extremamente prazerosa e sugestiva.
A composição da banda sonora, sempre sedutora nos filmes de Andersen, chega aqui a um requinte extraordinário. Numa sequência, ele conjuga com grande efeito o áudio de Emmanuelle Riva em Hiroshima Mon Amour com imagens de outros dramas e documentários sobre Hiroshima. A ambição teórica desse filme é tal que seu discurso se torna por vezes muito dispersivo, abrindo-se ora para considerações de Walter Benjamin, ora para uma exótica incursão pela figura de Marlon Brando. De certa forma, esses desvios se justificam pela epígrafe “uma história pessoal do cinema parcialmente inspirada por Deleuze”. Na esfera do pessoal, sempre há espaço para algumas idiossincrasias.
A mostra inclui filmes de Thom Andersen sobre o pioneiríssimo Eadweard Muybridge, o cineasta afro-americano Spencer Williams, o arquiteto português Eduardo Souto de Moura e outros temas ligados à cidade e à música de Los Angeles. O programa compreende, ainda, sete filmes realizados por parceiros de Andersen e cineastas que compartilham seus interesses. Entre eles, Samuel Beckett com seu famoso Film. Veja aqui a programação completa. E abaixo um teaser da mostra, feito a propósito de uma retrospectiva em Portugal:
Carmattos, você teria interesse em ser colunista do portal NoSet?
Não no momento, Jackson. Agradeço o gentil convite.
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