Notas sobre SUBTERRÂNEA e A MESMA PARTE DE UM HOMEM
Caçadores da arca perdida
Ideias muito confusas tentam levar adiante a proposta de Subterrânea, primeiro filme de ficção de Pedro Urano. Uma ficção, como de praxe atualmente, tingida pelo documentário. No centro de tudo está a investigação de uma geóloga (Susana Stein) e seu aluno (Negro Léo) acerca dos vestígios de um Rio de Janeiro antigo que ainda sobre-existem por baixo das ruas da cidade. Estranhamente, o que parece movê-los não é um interesse propriamente histórico ou arqueológico, mas a curiosidade quanto aos velhos boatos de que havia um tesouro dos jesuítas enterrado junto com as ruínas do Morro do Castelo (tema muito bem abordado no documentário O Desmonte do Monte, de Sinai Sganzerla).
Assim é que a dupla, como novos caçadores da arca perdida guiados pelo fantasma do escritor Lima Barreto, se lança aos túneis subterrâneos do Centro da cidade. Como pistas, têm inscrições encontradas (por acaso!) nas pedras. À medida que avançam pelas galerias, essas inscrições vão trocando o aspecto de “antigas” pelo de pichações modernas e mesclando referências a Dante e ao Livro do Apocalipse com poemas concretos e alusões contemporâneas como “Templo é dinheiro”.
Passado e presente são articulados precariamente através de metáforas. As riquezas da religião de ontem estão hoje nas mãos dos evangélicos. Os governos criam desertos ao adotarem a destruição por princípio. Tragédias da incúria como o incêndio do Museu Nacional e o rompimento de barragens se somam a iniciativas voluntárias como a derrubada do Morro do Castelo, a erradicação de favelas, a implosão da Perimetral (esta, na verdade, uma destruição construtiva), a incineração das florestas, o desmonte das universidades públicas. Registre-se que o próprio Pedro Urano já havia realizado HU, documentário sobre o abandono e a demolição espontânea do Hospital Universitário da UFRJ.
Sua passagem para a ficção me pareceu bastante problemática. A atuação do elenco é recitativa e não disfarça a enorme artificialidade do dispositivo que tenta transformar canhestramente uma pesquisa em aventura. Os conceitos de dobra no tempo e janela temporal são usados sem maior inspiração ou reverberação no roteiro. Da mesma forma, a suposta conexão entre a personagem de Clara Choveaux com os suicídios ocorridos na UERJ, assim como a performance de Cabelo Cobra Coral no desfecho (o cinema é a luz no fim do túnel), parecem enfiados aleatoriamente e esvaziam o argumento em vez de enriquecê-lo.
Subterrânea tenta estabelecer uma relação estética e inquisitiva com certos espaços da cidade, o que é seu melhor propósito. Mas, ao atirar em muitos alvos com pouca munição, acaba como brincadeira um tanto estéril.
Um falso passado
Um grande ator é capaz de insuflar vida em um filme. É o que vemos no drama psicológico com que a paranaense Ana Johann estreia no longa de ficção. A Mesma Parte de um Homem começa necessitando urgentemente de uma injeção de ânimo cênico. Numa casa rural, Renata (Clarissa Kiste) vive atormentada por um medo difuso e pela rudeza do marido (Otávio Linhares) e da filha (Laís Cristina), que costuma acompanhar o pai em suas caçadas. O clima opressivo se projeta de modo exacerbado na postura corporal de Renata, o que não ajuda muito a tornar a encenação palatável.
Depois que o marido morre num acidente, aparece no sítio um desconhecido (Irandhir Santos), ferido e com amnésia parcial. Não que Irandhir resolva as fragilidades do roteiro de Ana Johann e Alana Rodrigues, mas com ele vem uma lufada de pertinência que faltava até então. O ator passa a dar ritmo e tom às cenas, inclusive com a típica invenção de detalhes que particularizam suas criações.
A ideia central é muito boa. Aproveitando-se dos buracos na memória do forasteiro Lui, Renata cria para ele um falso passado como se fosse seu marido. Assim ela vai satisfazer desejos longamente reprimidos, especialmente em duas cenas de sexo muito bem simuladas.
As grandes dificuldades estão na passagem para o roteiro e a realização. Além das atrizes adotarem o porte de zumbis, o desenho psicológico dos personagens soa bem pouco plausível. Tanto Lui quanto a menina entram no jogo sem nenhuma inquietação, nenhum questionamento. Os temores de Renata quanto à relação da filha com o pai se prolongam no terceiro ato, levando a um desfecho flácido que nem Irandhir consegue sustentar de pé.
É uma pena que a sensibilidade e a inteligência da diretora, comprovadas em seus documentários (leia aqui) e os cuidados técnicos da produção não tenham sido suficientes para levar este filme aonde seu argumento prometia.