Macro e micropolíticas na Mostra de Tiradentes

Notas sobre #eagoraoque, KEVIN, WON’T YOU COME OUT TO PLAY? e À BEIRA DO PLANETA MAINHA SOPROU A GENTE

O pensador na berlinda

A hashtag incluída no título de #eagoraoque sinaliza duas coisas: a efemeridade daquilo que se pretende apenas uma inserção de momento nas redes sociais, mas também o desejo de interferir numa discussão ou numa realidade através da formação de uma comunidade virtual unificada pela mesma hashtag. A primeira rede formada foi a dos próprios realizadores e participantes do filme – intelectuais, artistas e ativistas sob a direção de Jean-Claude Bernardet e Rubens Rewald. O objetivo: discutir o estado do pensamento progressista no contexto da ascensão da extrema-direita no Brasil.

Essa rede, porém, está o tempo todo sendo colocada em crise no filme. Vladimir Safatle, “filósofo da mídia” (no dizer de Antonio Abujamra), é para quem convergem todas as questões. Intelectual acadêmico branquíssimo, pianista sofisticado, Vladimir está em rota de colisão com personagens reais e fictícios. Seu pai (vivido por Jean-Claude) e sua filha cobram dele mais ação e menos escrita. O pai, por vir de uma tradição de lutas sindicais, que hoje não ecoa mais na sociedade brasileira; a filha, por estar ligada a uma esquerda pós-PT, ingenuamente revolucionária na base do “vamos lá todos juntos”.

O choque se intensifica acidamente numa conversa entre Vladimir e um grupo de Capão Redondo (periferia de São Paulo), quando a aliança entre a quebrada e os “brancos de esquerda” é rejeitada raivosamente pelos primeiros. O calvário do filósofo abrange ainda uma ríspida cena de teatro de agressão no Oficina.

O que temos, afinal, nessa colagem de discussões, trechos de palestras e vinhetas ficcionais provocativas? A meu ver, temos um desejo de dramatizar a falência de algumas formulações de pensamento progressista sem que ainda tenhamos nada para botar no lugar. Das falas gritadas de resistência, dos discursos de autossuficiência da periferia e das palavras ponderadas do acadêmico desponta apenas uma cacofonia sem futuro, jatos que se esgotam tão logo as vozes se calam.

Vladimir Safatle é visto sendo aplaudido por jovens em conferências e manifestações acadêmicas, para logo depois aparecer impotente no confronto com representantes populares – seja ficcionalmente com o ator Valmir do Coco (de Azougue Nazaré), seja factualmente com a galera de Capão Redondo. Os gestos de capitulação do professor diante desses interlocutores soam, ao mesmo tempo, como uma autocrítica e um atestado de que vivemos um mau momento de isolamento identitário. Até mesmo uma iniciativa comunitária como o Banco Sampaio (que faz circular moeda social própria em bairros periféricos de São Paulo) é criticada por se valer do modelo bancário.

Em meio a esse diagnóstico (no fundo, mais um diagnóstico oferecido por um estamento social acusado de só fazer diagnósticos), figuram também as auto-encenações bem ao gosto de Jean-Claude Bernardet. Ele toma aula de tiro, mutila-se (com efeito especial) e canta a Internacional sob o chuveiro. Personagens “do povo” se intrometem nas conversas dos intelectuais. Há um trânsito permanente entre as personas reais e suas versões ficcionais. Tudo isso somado faz de #eagoraoque um filme raro e complexo, mas datado, que deve ser visto logo enquanto seus sentidos estão bem atuais. Antes que a hashtag desapareça na voragem dos algoritmos.

A quem quiser se aprofundar na proposta e nos bastidores do filme, recomendo a ótima entrevista de Bernardet e Rewald ao canal 3 em Cena.

Amigas, amigas, vidas à parte

No polo oposto da macropolítica discutida em #eagoraoque, três outros filmes vistos ontem trafegam nas micropolíticas da família, do amor e da amizade. São eles o longa Kevin, incluído na Mostra Aurora, e os curtas Won’t You Come Out to Play? e À Beira do Planeta Mainha Soprou a Gente.

No documentário Kevin, a diretora Joana Oliveira (Morada) faz uma viagem a Uganda para visitar uma amiga com quem havia estudado na Alemanha 20 anos antes. Ainda abalada pela perda de uma gravidez e temerosa de perder o pai para um câncer, Joana parte numa jornada que é também de auto-exame. Kevin Adweko é uma mulher extremamente inteligente, fluente, e leva uma vida muito diferente da de Joana. Foi casada e divorciada na Alemanha, retornou para Uganda com três filhos pequenos e dá aulas de alemão.

O reencontro, cheio de expectativas mútuas, leva Joana a compartilhar da vida doméstica de Kevin e refletir sobre a sua própria condição. Na verdade, apenas intuímos esses rebatimentos na consciência da diretora-personagem, uma vez que ela se mantém quase sempre retraída, numa posição apenas reativa às digressões e provocações de Kevin. Os contrastes entre os estilos de vida das duas ficam insinuados nas conversas, mas sem um desenvolvimento que os aprofunde e os transforme numa reflexão mais substancial.

A breve convivência tem momentos divertidos e sugestivos, como a passagem por um mercado, as interações da visitante com as crianças e, principalmente, uma decisão que altera a aparência física de Joana. De qualquer forma, a frequente expressão de apatia de Joana me deixou uma dúvida se seria por razões de cunho pessoal ou por perceber, ao longo das gravações, que não estava construindo tudo aquilo que esperava.

Melodrama e performance de si

Won’t You Come Out to Play? foi realizado durante a quarentena pela atriz e diretora trans Julia Katharine para o projeto Sesc Convida. Cada atriz e ator gravou sua participação em casa com seu celular. A montagem resolve razoavelmente a história de uma mulher afetada pela morte da irmã mais velha e pela relação conflituosa com um pai pelo qual não se sentia amada. Trata-se de um melodrama tão sufocante quanto o isolamento de cada personagem em seus monólogos. O melodrama, assim como o título em inglês, é terreno de predileção de Julia Katherine. O filme é certamente elaboração de assunto pessoal seu. Além de Claudia Campolina no papel central, destaca-se a intensa participação “virtual” de Tuna Dwek no papel da mãe.

Bruna Barros e Bruna Castro assinam e protagonizam À Beira do Planeta Mainha Soprou a Gente, uma colagem de confissões e fabulações sobre afetos privados e posturas públicas de duas jovens lésbicas. Estamos na seara do puro espontaneísmo e do deslizamento cada vez maior entre as esferas da intimidade e do compartilhamento. Não que as Brunas deixem de falar algumas coisas importantes e poéticas, mas a ênfase na performance de si sugere uma crença em que isso basta para criar um filme. Senti o mesmo em relação à egotrip de Letícia Ângelo no curta Sapatão – Uma Racha/dura no Sistema, também na programação da Mostra.

 

      

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