Enfim, a Première Brasil 2020

Festival do Rio prossegue na corrida para recuperar o tempo perdido. A Première Brasil 2020 apresenta 45 filmes, entre os quais KING KONG EN ASUNCIÓN e VALENTINA

Passamos boa parte do ano passado na expectativa de haver ou não Festival do Rio. Acabou que não tivemos, por obra da pandemia e do pandemônio na economia da Cultura. No primeiro semestre de 2021, o festival começou a tirar o atraso. Ganhou mostras especiais, em abril, no Canal Brasil (filmes de ficção brasileiros) e em maio/junho, no Canal Curta / Curta On (documentários brasileiros). Em julho, foi a vez da programação especial de filmes inéditos internacionais em parceria com a plataforma Telecine Play. Agora é hora de colocar na rua os selecionados da Première Brasil 2020.

A partir de hoje (5/8), em formato híbrido, 45 novos filmes brasileiros chegam ao cinema Estação Net Botafogo, no Rio de Janeiro (5 a 11/8), e virtualmente na plataforma InnsaeiTV (6 a 15/8). Cada longa terá uma sessão presencial e ficará disponível na plataforma a partir do dia seguinte durante no máximo 48 horas, conforme o limite de visionamentos de cada filme. Os curtas estarão reunidos em programas, também com sessões únicas e oferta online já no mesmo dia. O acesso é gratuito, no cinema – com lugares limitados – e na plataforma.

A programação pode ser consultada no site do festival.

Já tenho textos publicados sobre o documentário ensaístico #eagoraoque, de Jean-Claude Bernardet e Rubens Rewald, e os curtas República, de Grace Passô, e Yaõkwa – Imagem e Memória, de Vincent Carelli e Rita Carelli. A seguir,  comento os longas King Kong em Asunción, de Camilo Cavalcante, e Valentina, de Cássio Pereira dos Santos.

O velho matador cai na estrada

O pernambucano Camilo Cavalcante (A História da Eternidade) comparece na Première Brasil com o seu melhor longa-metragem, na minha opinião. Embalado por uma narração poética no idioma guarani, King Kong en Asunción conta “uma história de ruínas” – a de um velho matador profissional em ação nas profundezas da América do Sul. Na verdade, “o velho” sem nome está em vias de largar o ofício depois de exterminar um homem no ermo alvíssimo do Salar de Uyuni, na Bolívia.

Dali ele sai em longas caminhadas em direção ao Paraguai, onde pretende rever a única mulher que amou e com quem tem uma filha que nunca conheceu. No caminho, é assombrado pelos fantasmas das pessoas que matou e reencontra um barbeiro amigo (Fernando Teixeira) para uma “despedida” com muito álcool e algumas prostitutas. É um personagem emblemático da violência rural, que o traumatizou na infância e plantou o ódio em seu coração. Aos poucos vamos compreendendo as raízes de sua solidão e de sua estreita convivência com a morte. “Às vezes sente que é bicho”, informa a narração a cargo da atriz paraguaia Ana Ivanova.

O velho tem horror aos poderosos a que serve eliminando desafetos. Uma cena na suíte presidencial de um hotel em Assunção ilustra exemplarmente esse desprezo. Uma última encomenda de morte talvez não venha a ser cumprida.

King Kong en Asunción é um road movie deslumbrante pelas estradas do continente. Além do espetacular Salar de Uyuni, o andarilho passa pelo cemitério de trens de Potosí, pelo altiplano e por mercados bolivianos, pelas estradas do Chaco no Paraguai, por antigos pueblitos melancólicos e trechos de grande beleza natural.

No papel dessa alma perdida no silêncio e na amargura está o ator brasiliense Andrade Júnior, conhecido também por personificar um Papai Noel tradicional em Brasília. Ele faleceu em 2019, antes de ver o filme finalizado. Sua figura corpulenta e atarracada deixa ver um lastro de doçura por trás da impiedade do personagem. Talvez não houvesse forma melhor de dizer adeus ao cinema.

Com o capricho visual e a solidez de mise-en-scène que caracterizam seus filmes, Camilo Cavalcante construiu uma narrativa tênue, mas cativante. O filme tem um punhado de momentos memoráveis e uma dicção lírica que evoca a ancestralidade latino-americana em contraponto à rispidez e à desagregação da realidade contemporânea.



A escolha de Valentina

Quando a menina trans Valentina se muda com a mãe para uma cidadezinha no interior de Minas, a gente sabe o que pode esperar: incompreensão, preconceito e agressões transfóbicas. Tudo isso chega a tempo e a hora, dentro do mais que esperado. Mas Valentina traz junto algumas surpresas: afinal, na pequena Estrela do Sul existem também jovens abertos à diferença e uma escola disposta a cumprir a lei que proíbe a discriminação de gênero.

O primeiro longa de Cássio Pereira dos Santos traz à frente do elenco a youtuber trans Thiessita (Thiessa Woinbackk) completamente desproduzida. Valentina conta com o apoio total da mãe (Guta Stresser), mas sente a falta do pai (Rômulo Braga), não somente por motivos burocráticos. O filme é um tanto esquemático na forma como administra o Bem e o Mal de maneira a deixar sua mensagem de coragem e, vá lá, resiliência.

Os diálogos são duros, e alguns coadjuvantes ajudam pouco a naturalizá-los. Certos clichês melodramáticos seriam dispensáveis, enquanto o excesso de elipses acaba esvaziando momentos importantes da narrativa. No fim das contas, entre qualidades e deficiências, Valentina joga suas fichas na importância do tema e no recado de estímulo à liberdade de escolha e ao bom enfrentamento.

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