Um dos aspectos que pretendo abordar no bate-papo da Mostra Fotocine – hoje (quinta) às 18h30 no Centro Cultural Correios, Rio – é o que venho chamando de Criadoria. Trata-se de um processo em que a criação se confunde com a curadoria, pois se projeta sobre obras alheias já existentes ou ainda por nascer.
Esse processo tem sido muito comum nas artes visuais que se fundam na reprodutibilidade técnica, característica que facilita a criadoria. Cinema e fotografia, temas da mostra curada por Andreas Valentin, são justamente os campos em que isso mais parece florescer.
No cinema, a criadoria se manifesta desde a velha forma do filme em episódios, em que um produtor-curador repassa a diretores diversos a responsabilidade de criar um filme curto a partir de um determinado tema ou dispositivo – as séries “Cidades, eu te Amo”, Destricted (filmes eróticos por diretores de cinema de arte) etc – até modelos mais sintonizados com a arte colaborativa em voga.
Tomemos, por exemplo, Desassossego, um longa formado por fragmentos filmados por diversos realizadores a partir de sugestões contidas numa carta dos diretores-curadores Felipe Bragança e Marina Meliande, que montaram o filme final. Ou Pacific, em que Marcelo Pedroso editou cenas filmadas por turistas em cruzeiros. Eduardo Coutinho fez Um Dia na Vida com trechos de programas de TV de um único dia, enquanto Kevin MacDonald construiu A Vida em um Dia com cenas filmadas por pessoas de várias partes do mundo num mesmo dia e postadas no Youtube especialmente para esse projeto. Em The Clock, Christian Marclay examinou uma miríade de filmes para reunir referências visuais e sonoras às 24 horas do dia, minuto a minuto, num filme de 24 horas de duração.
Os fotógrafos não estão imunes a essa febre de criadorias. Dois projetos chamaram minha atenção recentemente. Um é do artista canadense Jon Rafman, que surfou mundo afora pelo Google Street View e encontrou “fotos” chocantes, curiosas, engraçadas ou intrigantes. Seu projeto 9 Eyes of Google Street View já rendeu exposições, um livro e muita badalação. O outro projeto, já tratado aqui no blog, é o da fotógrafa suíça Corinne Vionnet, que sobrepôs centenas de fotos encontradas na internet, criando imagens coletivas de pontos turísticos incontornáveis.
Esses trabalhos lidam com a abundância e o quase-anonimato da produção fotográfica contemporânea. Procuram no excesso e no indiscriminado aquilo capaz de criar novos sentidos. Novos, mas que, em última análise, se referem à própria condição atual da imagem: solta pelo mundo.
Esses criadores-curadores se destacam pela eventual originalidade de suas propostas e pelo acesso que conseguem aos meios de repercussão. Mas não têm outros privilégios especiais, já que todos somos curadores em potencial. O acervo do mundo está ao alcance de qualquer um para escolher, recombinar, repaginar e exercer a criadoria.
Olá Carlos,
Acho que é a primeira vez que posto um comentário aqui, mas já frequento seu blog há algum tempo:
Nas minhas leituras e debates pessoais sobre o ‘novo’ audiovisual, ou manifestações ‘artísticas’ contemporâneas, também venho confrotando-me com isso que você chamou de ‘criadoria’. Ainda não a nomeei, ‘criadoria’ talvez fosse um bom termo. Em um texto para amigos chamei-na de ‘reaproveitamento do folclore (de massa) do século XX’. Restringi o ‘reaproveitamento’ ao século XX pois tratava-se de dois exemplos em particular, dois videoclipes, de grupos atuais (Twin Shadow e Summer Camp) que na banda imagem remontavam obras audiovisuais – o doc brasileiro Punks do ABC, no caso do Twin Shadow, e o fic A Swedish Love Story em Summer Camp.
E a palavra reaproveitamento tem esse aspecto ambiental de reciclagem, aproveitamento de material já existente, sem a necessidade de produção e utilização de, diríamos assim, recursos naturais virgens. Considero que o que surgirá de mais interessante de agora em diante terá esse aspecto explícito em sua confecção.
De alguma forma, considero também que tais manifestações serão sintomáticas de certo estado das coisas, certa dificuldade de significação, de produzir ‘novos’ significados. Daí a necessidade de sobrecamadas, da justaposição de enunciados. Como se cada ‘fala’ fosse tomada como uma ‘voz-baixa’, um balbucio, que necessitasse ser somada a outras ‘falas’ para se tornarem audíveis. Não qualifico como positivo ou negativo, mas pelo menos acho algo consciente do senso de saturação, do ‘já vi isso antes’ tão em voga.
Positivamente esse caráter de preservação, porém essa contaminação entre obra original e produto derivado pode afetar a autonomia do original, sua autoria ser atrelada a sua curatoria. (Penso em casos específicos, e mais especificamente, nos dois casos citados acima).
E nos exemplos que você cita, acho que há duas distinções a ser feita: quando há a garimpagem de arquivos previamente produzidos e quando há o dispositivo para a produção de novos conteúdos.
Por fim, acho que se anuncia algo sobre um novo estatuto da imagem na atualidade, algo que você já adianta nos dois parágrafos finais.
Espero ter falado algo o mínimo legível.
Abs, Francisco.
Salve, Chico. É sempre bom saber que não estamos pensando “sozinhos” alguma coisa. Não conheço os clipes citados, mas imagino que estes apenas reaproveitam imagens de filmes, editando-as com uma ordem própria. O que acho mais interessante atualmente é esse olhar sobre a abundância de coisas que ainda não viraram “obras”. Ou porque ainda serão feitas segundo a proposta da criadoria, ou porque foram por esta resgatadas do anonimato e da dispersão absoluta. Como você bem diz, estamos no limiar de uma nova ordem na circulação de imagens. Um abraço e obrigado pela presença aqui no blog.