O CCBB de Brasília está comemorando os 80 anos de Vladimir Carvalho com a mostra Vladimir Carvalho Doc 8.0, organizada por Gioconda Caputo, Carmem Moretzsohn e Sergio Moriconi. Escrevi o seguinte texto para o catálogo do evento:
A MEDIDA HUMANA
Se alguém no Brasil merece a alcunha de “homo-documentarius”, este é Vladimir Carvalho. Não somente porque ele se dedicou com exclusividade a esse modo de cinema em toda a sua carreira de já 55 anos, sem qualquer exceção, mas também por uma atuação abrangente em prol do cinema documental. Aí compreendem-se a formação de gerações de documentaristas como professor da Universidade de Brasília, os livros e artigos publicados, a militância diuturna pela causa de um cinema colado à realidade brasileira.
Desde que passou do cineclubismo para a própria gênese do ciclo do documentário paraibano, como corroteirista de Aruanda, Vladimir situou-se como um dos protagonistas do moderno documentário brasileiro, aquele que se beneficiava das tradições griffithiana e flahertiana, refrescando-as com um desejo de inovação que germinava no cinema verdade e no cinema direto do início dos anos 1960. A inspiração que os documentaristas forneceram ao Cinema Novo é fato histórico consumado. Aruanda, Romeiros da Guia, Cabra Marcado para Morrer e A Bolandeira, filmes que tiveram graus diferentes de envolvimento de Vladimir, são típicas obras de transição entre o cinema brasileiro clássico e as novas configurações da modernidade.
Começava ali uma trajetória que seria sucessivamente mais encorpada por um rico cruzamento de interesses etnográficos, sociológicos, políticos, culturais e poéticos. Mesmo correndo o risco de soar redutor, proponho aqui um entendimento evolutivo da obra de Vladimir, que parte de um olhar eminentemente antropológico nos primeiros filmes. A partir de O Sertão do Rio do Peixe e consequentemente de O País de São Saruê, coincidindo com o recrudescimento da ditadura militar, a obra do diretor passa a alternar, quando não conciliar, a mirada etnográfica com um sentido mais diretamente político.
A mudança da Paraíba para Brasília, em 1970, e a descoberta de matrizes culturais do Centro-Oeste que reverberavam o seu Nordeste natal levam Vladimir a abrir veredas no documentário sobre artes e literatura. Esse campo de trabalho, por sinal, tem sido o mais visitado nos seus filmes mais recentes sobre José Lins do Rêgo, o Rock Brasília e o pintor Cícero Dias, foco de seu próximo longa.
Longe de constituir fases estanques na filmografia do autor, esses interesses foram se imbricando progressivamente – e é justo afirmar que nenhum de seus filmes se esgota no tema antropológico, político ou cultural. O que seria o caudaloso e operístico Conterrâneos Velhos de Guerra senão a junção dessas diversas perspectivas a respeito de imigração, tragédia política e resistência cultural em torno da construção de Brasília? Como ver Rock Brasília a não ser como o resgate de uma experiência que vai muito além da música para abranger um modo de vida da sociedade local e um estado de espírito do país?
Memória e resistência caminham sempre juntas no cinema de Vladimir. Não há aqui a simples evocação, nem tampouco o mero grito. Assim como Saruê se volta para o passado colonial, os antigos garimpos e as histórias míticas de abundância do sertão para refletir sobre a condição dos camponeses de meados do século XX, Barra 68 vai buscar na lembrança das pessoas e dos arquivos os bastidores da invasão da UnB e de alguma forma aplacar um trauma histórico e cultural.
Essa permanente interseção de esferas responde talvez pelo maior diferencial do trabalho de Vladimir Carvalho em relação a outros grandes documentaristas brasileiros. Mas há também fatores adicionais, que dizem respeito aos métodos utilizados pelo cineasta.
Cinema de corpo a corpo
Vladimir não tem celular, nem e-mail. Não tem veículo próprio, nem produtor para cuidar regularmente de seus projetos. Aos 80 anos, continua o “cabra” solto no mundo que era já nos primeiros filmes. Alguém que só atua na conversa frente a frente, no trato próximo e pessoal.
Essa maneira de ser do homem Vladimir vai ditar sua maneira de fazer cinema. Vai forjar um cineasta que embala seus sonhos numa escala humana, plantando e colhendo no miúdo, reunindo pacientemente as condições e materiais de cada filme. Vai determinar, ainda, que esse cinema se faça numa abordagem corpo a corpo com seus personagens e numa apropriação apaixonada dos arquivos cinematográficos.
Afora algumas poucas exceções de curtas etnográficos e ambientalistas, é através de personagens fortes e carismáticos que Vladimir traz à baila as questões que pretende discutir. Seus filmes têm, portanto, uma medida humana, por mais épicos, alegóricos ou questionadores que possam ser. Daí ser praticamente ausente a narração expositiva tradicional. Quando muito, temos a poesia falada e a música como elementos de alusão ou contextualização. De resto, são as pessoas que têm a palavra – e era assim antes mesmo que o realizador tivesse acesso ao recurso do som direto (como nas entrevistas gravadas em estúdio para os offs de Rio do Peixe, depois Saruê, que ele divertidamente chama de “som indireto”).
Daí ser fundamental a presença do corpo e da voz de Vladimir dentro da cena de tantos dos seus filmes. Trata-se de uma presença que vai além do funcionalismo da entrevista. Vladimir participa emocionalmente das conversas, seja pelas expressões de admiração e respeito, seja pelo distanciamento ou mesmo o questionamento. Dividindo o quadro ou a decupagem com o interlocutor no mesmo espaço físico, o diretor estabelece com ele uma dramaturgia instantânea, que é percebida e tende a implicar também o espectador. São exemplos clássicos dessa atitude a cena da meta-entrevista com o suposto garimpeiro de urânio em Saruê e a discussão áspera com Oscar Niemeyer a respeito do massacre de operários em Conterrâneos.
A mesma disposição para o contato direto e pessoal vai se reproduzir na relação vital de Vladimir com os arquivos fílmicos. O uso que ele faz desses materiais quase sempre ultrapassa a ilustração trivial e resulta numa nova escrita, com novos e insuspeitados significados. Brasília Segundo Feldman é uma das manifestações mais sensíveis dessa prática de ressignificação de arquivos, quando estes passam de denotativos a conotativos, de fragmentos jornalísticos a peças de um puzzle sobre o sentido profundo das coisas.
Poucos dispositivos de documentação são alheios à obra de Vladimir. Podemos excluir o modo de observação, que supostamente descarta a interferência do realizador e se opõe à natureza do seu método; e o modo da primeira pessoa, pois Vladimir, embora esteja pessoalmente engajado em todos os seus filmes e tenha se aproximado de uma autobiografia indireta em O Engenho de Zé Lins, até hoje não se elegeu personagem de si mesmo. Seu repertório de ferramentas abarca a interação, a compilação, a elegia, a inserção ficcional, a digressão poética e a experimentação narrativa. Não é por outra razão que seu cinema é apreciado por tantos cineastas, e tão distantes entre si quanto Silvio Tendler e Arthur Omar.
É um privilégio para o cinema brasileiro ter o artista operário Vladimir Carvalho chegando aos 80 anos em plena atividade – viajando, filmando e colocando seu corpo e seu temperamento a serviço de novos trabalhos. E sobretudo tomado pela curiosidade participativa e criativa que o moveu desde sempre. Longa vida, pois, ao Homem-Documentário.
Carlos Alberto “Stents” de Mattos, Gostei demais do seu texto sbre o Vlaldimir. Parabéns! Hasta… Sergio Muniz
Que bom, Serjão