“Eu tenho um estilo para cada filme”, diz Sylvio Back num trecho da conversa que mantivemos no pograma Faróis do Cinema que vai ao ar logo mais à 0h15 de terça para quarta no Canal Brasil. Essa postura de certa forma se reflete nas admirações que Sylvio elegeu como seus faróis – diversas a ponto de abranger Fellini, Bergman, Cantando na Chuva e o iconoclasta Hitler, de Hans-Jürgen Syberberg.
O realizador destaca a importância do acabamento no cinema americano e elogia a combinação de arte e entretenimento. Expõe também sua visão do Orson Welles de É Tudo Verdade (seu personagem em Lost Zweig) como premonição do trabalho de Glauber Rocha. A faceta do Sylvio Back poeta erótico vai trazer ao papo, ainda, o cinema de Nagisa Oshima. Uma conversa das mais interessantes nesse oitavo programa da série dirigida e produzida por Marcelo Laffitte.
Saí muito satisfeito de ENTRE ABELHAS. Comédia e drama têm seus limites apagados nessa história do editor de vídeos (Fabio Porchat) que, depois de abandonado pela mulher, começa a sofrer o estranho distúrbio de não ver (nem ouvir) cada vez mais gente. O caso de um homem que vai aos poucos ficando literalmente sozinho no mundo é personagem raro na dramaturgia do cinema brasileiro, propondo um comentário reverso à nossa era de interação exacerbada através das redes sociais, festas e trabalhos coletivos. E a forma delicada e coerente como Ian SBF e o pessoal do Porta dos Fundos o apresentou é ainda mais especial: nada é enfatizado demais, resta espaço para o espectador fazer deduções, a gramática cinematográfica é moderna e estimulante. Em uma palavra, esse filme não se parece com nada produzido pelo cinema brasileiro ultimamente: não é comédia apelativa (embora tenha referências ao gênero, bem absorvidas pelo roteiro), nem parábola socio-antropológica, nem filme de garagem. É uma iniciativa louvável de falar sobre a contemporaneidade com linguagem simples e inteligente. Não a evitem por preconceito ou por rejeições apressadas.
Freud jamais imaginou que os sonhos pudessem servir de pistas para o desvendamento de um crime, mas PÁSSARO BRANCO NA NEVASCA coloca essa possibilidade em cena. Meu colega Luiz Fernando Gallego, crítico e psicanalista, me explica que os sonhos podem, isso sim, ser manifestações de uma hipótese recalcada que aflora no inconsciente da pessoa que sonhou. No filme, se a psicanalista vivida por Angela Bassett assegura que os sonhos não têm necessariamente um significado, o investigador encarregado do caso discorda da afirmação. Assim, entre o divã e o detetive, entre Eros e Tânatos, entre o drama familiar e o thriller criminal, Gregg Araki forja mais uma visão do inferno suburbano americano, um mundinho de tédio pre-programado, afetos falidos e pulsões sexuais dissimuladas. O tesão é o que move todos os personagens, a começar pela jovem Kat (Shailene Woodley, a ninfeta da vez em Hollywood), que se vê perdida quando a mãe (Eva Green) desaparece misteriosamente e o namorado passa a rejeitar seus convites para a cama. O mistério se adensa gradativamente, apesar de alimentado por flashbacks bastante convencionais narrados por Kat. O argumento, embora vulgar, desperta certo interesse inicial, mas os problemas do roteiro se agravam quando o enredo dá um salto de três anos, e os clichês e implausibilidades se multiplicam. Isso vai até um final desastroso, que transforma a trama potencialmente hitchcokiana numa mera piada de efeito.
Esse filme húngaro O DIÁRIO DA ESPERANÇA tem um pouco de tudo o que me repugna no cinema atualmente: uma encenação pesadona, antiquada e teatralesca; estereótipos de contos de fadas aplicados ao mundo adulto (avó-bruxa, vilões de pescoço duro, crianças sofredoras); personagens seguidamente vitimizados e autovitimizados; inverossimilhanças de comportamento em nome de uma parábola que precisa ser demonstrada até o fim, custe o que custar à dramaturgia. O drama pretende denunciar a desumanização da (Segunda) guerra através de dois garotos gêmeos que vão perdendo tudo enquanto procuram sobreviver à dureza circundante e acabam perdendo também o tesouro maior da fraternidade. Eis o tipo de mensagem dispensável (por óbvia) hoje em dia, mas o filme ainda poderia se salvar com um mínimo de sutileza e menos insistência no tema da pedofilia.
Deixo aqui um registro sobre dois outros filmes do documentarista francês Denis Gheerbrant, vistos na mostra Cine Doc Fr:
ET LA VIE é o seu primeiro longa, realizado em 1990/91. Mais que em seus filmes posteriores, neste Gheerbrant está solto no mundo com sua câmera. Não tem pauta nem destino muito certos. Percorre uma vasta região que vai de Marselha a Genebra e filma encontros com gente comum, em sua maioria operários ligados à indústria da mineração. De alguns, obtém histórias memoráveis, como a do rapaz que deixou o “conforto” emocional das drogas e descobriu que estava soropositivo; ou do homem que mostra o seu antigo local de trabalho calcinado por um incêndio na fábrica onde trabalhava. Com outros, conversa apenas rapidamente, o tempo suficiente para colher uma pequena impressão de suas vidas. A uma menina tímida, por exemplo, limita-se a perguntar seu nome. Tudo parece ocasional e imprevisto. Fiapos de existência perdidos em paisagens sem atrativos, numa França e Suíça bem distantes dos cartões postais. Mais que qualquer tema ou dispositivo, o que aproxima aquelas pessoas é estarem ali no filme, dividindo o tempo com as bonitas pausas que Gheerbrant sempre distribui ao longo da projeção.
LE VOYAGE À LA MER, ao contrário, tem um foco bem preciso: as pessoas de classe média que acampam em praias no período de férias. Gheerbrant arma sua barraca, como um veranista solitário, e, câmera em punho, começa a interagir com seus “vizinhos”. Embora quase não fale de si mesmo, ele conduz as entrevistas como conversas despretensiosas, sempre à sua maneira: sem separar as entrevistas das atividades cotidianas e misturando-se a outros interlocutores em papos coletivos. As férias no litoral aparecem, então, como um interlúdio de evasão na vida rotineira de jovens trabalhadores e famílias de operários, policiais, etc, ou como “território de caça” para rapazes solteiros. Gheerbrant tem verdadeira adoração pelo banal e nada faz para buscar ou produzir a cena extraordinária. Este filme é mais um de seus elogios à mescla indiscernível de felicidade e ressentimentos que uma conversa amiga sempre pode fazer vir à tona.
Grato pela menção.
Tive preguiça de escrever sobre dois desses filmes: o que vc me citou é brega; o de guerra é um horror, um horror, nada mais que um horror travestido de filme de guerra mas do tipo exploitation de horrores de guerra – e outros horrores que nem tinham nada a ver com guerra.