Irmãos Salles, parcerias e bifurcações

A Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) lançou recentemente o livro “Documentário Brasileiro – 100 Filmes Essenciais”. Assim como o anterior “100 Melhores Filmes Brasileiros”, resulta de uma eleição entre críticos de todo o país. A partir da lista de eleitos, 100 críticos encarregaram-se de escrever sobre os filmes. Coube a mim o curta Esta Não é a Sua Vida, a meu ver seminal para uma nova configuração do documentário brasileiro. Além dos textos sobre filmes em particular, o volume integra pequenos ensaios sobre nomes e movimentos marcantes na história do doc brasileiro. Para esse bloco, fiz o texto abaixo sobre o lugar dos docs na obra de Walter e João Moreira Salles. 

Quando usamos a expressão “Irmãos Salles”, diga-se logo, não nos estamos referindo a uma unidade criativa como os Taviani, os Coen ou os Dardenne. Walter Salles e João Moreira Salles representam dois modos muito distintos de se inserir no mundo do cinema, e isso se reflete na forma como cada um exercita o documentário.

Eles começaram em regime de parceria nos anos 1980, como pontas de lança de uma geração que trouxe sofisticação de temas e de linguagem ao doc televisivo. Séries como Japão, uma Viagem no Tempo (1986), China, o Império do Centro (1987) e América (1989), além de outros trabalhos para a televisão, tiveram os irmãos se revezando nas funções de diretor, roteirista e editor. A partir da década seguinte, porém, Walter consolidou uma parceria com Daniella Thomas. João fez o mesmo com Arthur Fontes e Katia Lund.

Arrisco-me a dizer que, em se tratando de documentários, os dois irmãos se distanciam a partir do que move cada um na direção de um filme. Enquanto Walter se interessa por assuntos ou personagens de sua estima e admiração, encarnando o que chamo de “documentarista afetivo”, João costuma se lançar àquilo que lhe permite testar formas e interrogar condutas dentro do campo do documentário.

Franz Krajcberg, Tom Jobim, Jorge Amado, Tomie Ohtake, Rubens Gerchman, Chico Buarque, a dupla sertaneja Castanha e Caju e o chinês Jia Zhang-ke são figuras retratadas em filmes de Walter. Ainda nos anos 1980, ele dirigia o programa de TV Conexão Internacional, de entrevistas com grandes personalidades do mundo das artes, da literatura, do esporte e da política. Longe de mim menosprezar o teor de criatividade de cada um desses trabalhos, mas quero enfatizar o traço de simpatia que predomina na relação entre Walter e os protagonistas de seus docs. Essa simpatia tem por base o afeto e o respeito do cineasta pelas tradições modernas do cinema, da música e das artes visuais.

Outra característica de Walter é a relação estreita, mas não híbrida, de sua ficção com o documentário. Sabemos que o seu curta documental Socorro Nobre (1996) inspirou Central do Brasil, assim como Linha de Passe recebeu influxos dos docs Futebol (1998) e Santa Cruz (1999), ambos de João. A prática documentária lhe ocorre também como empreitada paralela ou exercício preparatório para a ficção. Esses são os casos de dois filmes nunca concluídos: um doc sobre o bairro parisiense de Belleville, rodado enquanto ele fazia seu episódio para Paris, Je t’aime, e outro sobre o percurso coberto pelo livro de Jack Kerouac, que antecedeu a realização de Na Estrada.

João Moreira Salles, por sua vez, tem no documentário uma ferramenta para sua curiosidade sobre as imagens advindas da realidade. Ao contrário de Walter, sua formação tem menos a ver com a cinefilia do que com o jornalismo e as leituras teóricas e científicas. A cada filme João procura explorar um formato possível de documentário e, muitas vezes, colocar indagações sobre a própria natureza do cinema documental.

O curta sobre Ana Cristina César, Poesia é Uma ou Duas Linhas e Atrás Uma Imensa Paisagem (1990), é um perfil de artista traçado no experimentalismo e na videoarte. Impulso semelhante anima Blues (1990), sobre a música-lamento afro-americana. Na minissérie Futebol, João e seu parceiro Arthur Fontes combinaram diferentes procedimentos documentais, com destaque para o episódio sobre Paulo César Caju nos moldes do cinema direto americano, o método mais utilizado e difundido teoricamente por João.

O cinema direto, ou documentário observacional, predominou em Nelson Freire (2003) e Entreatos (2004), cada um problematizado pela natureza de seus personagens centrais. Já Notícias de uma Guerra Particular (1999) e O Vale (2000), feitos originalmente para a TV, se aferravam ao modelo do doc de reportagem. Santiago (2007), por sua vez, afiliava-se ao doc pessoal-familiar e veiculava uma autocrítica acerba quanto à relação diretor-personagem. No Intenso Agora (2017) traz um João plenamente instalado no documentário ensaístico, ecoando seu apreço pelo cinema de Chris Marker e Harum Farocki.

A importância dos Irmãos Salles não pode ser avaliada sem se levar em conta a sua contribuição, através da produtora Videofilmes, para o surgimento de alguns documentaristas, como Sérgio Machado e Renato Terra, e o revigoramento de veteranos como Nelson Pereira dos Santos e, sobretudo, Eduardo Coutinho.

Um comentário sobre “Irmãos Salles, parcerias e bifurcações

  1. Pingback: Esta Não é a sua Vida | carmattos

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s